As redes sociais se tornaram vitrine da confusão racial que ronda uma parte da comunidade negra dos EUA e ficou bastante comum, principalmente para nós brasileiros, encontrarmos questionamentos sobre a nossa “negritude” vindos daquele país. O caso mais emblemático foi no Mundial de Ginástica Artística 2023, quando vários estadunidenses questionaram a imprensa ter divulgado Rebeca Andrade como “Black” ou seja, negra para nós.
Mesmo em 2024, com o histórico pódio formado por Rebeca Andrade, Simone Biles e Jordan Chiles, ainda encontramos algum barulho em inglês nas redes. De onde vem esse desencontro da identidade negra? A resposta disso é mais fácil do que se imagina, mas vamos por partes.
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Talvez você tenha assistido vários filmes, legendados ou dublados sobre a história das lutas civis negras nos EUA e como os dubladores ou tradutores frequentemente colocam a palavra “negro” no lugar de “Black” você não tenha dado conta de que são dois termos construídos de forma diferente. Já escrevi (aqui) sobre a construção histórica do termo negro no Brasil, nascida nas discussões políticas dos movimentos do nosso país ao longo de décadas. O mesmo aconteceu nos EUA, porém com a palavra “Black”, que foi substituindo as outras “colored” e “negro” após a década de 60.
Um dos ingredientes que sempre esteve presente para algumas comunidades negras estadunidenses era um tipo complexo de nacionalismo que ajudou a definir o termo, isso porque os esforços de muitos era focado exclusivamente na sua comunidade. O presidente da African American Intellectual History Society (AAIHS) e professor de história da Claflin University escreveu:
A identidade “Black” é a identidade social mais política usada para identificar pessoas de ascendência africana nos Estados Unidos. A década de 1960 constitui um momento fundamental que recriou o que significava ser negro nos Estados Unidos, amarrando percepções depreciativas de negritude anteriores à década de 1960 como um adjetivo e o uso de black pós-década de 1960 para denotar povo, orgulho e poder. Ativistas negros nas décadas de 1960 e 70 redefiniram e recriaram o que significava ser black nos Estados Unidos. (Veja aqui)
Acredito que isso vai muito pela questão dos estadunidenses se enxergarem como centro de todo o mundo, então é comum que algumas definições enfatizem a comunidade interna do seu país. É isso gera essa sensação de que são uma etnia própria para a galera mais desinformada da internet.
Os EUA também foram alimentados de ideologias nacionalistas pretas que reforçam esse entendimento. Os negros americanos geralmente percebem duas formas de patriotismo – uma versão convencional impregnada de branquitude e uma marca pessoal que reconhece as lutas raciais.
A visão convencional dos estadinidenses considera os brancos os verdadeiros americanos e exclui as contribuições dos negros. A outra visão, nascida da comunidade negra, é um contraste a isso. Muitos negros nos EUA, veem sua comunidade como uma “nação dentro de uma nação” com experiências e perspectivas distintas em desacordo com a sociedade em geral.
A ideia de ser uma nação própria acaba se refletindo também na relação com comunidades negras imigrantes, de outras nacionalidades. Deste modo é comum vocês encontrarem na imprensa mundial termos diferentes para negros brasileiros, colombianos e etc. Somos ocasionalmente descritos como Afrolatinos, Afro-brasileiros e ainda há estadunidenses que insistem em não usar o termo “black” para uma comunidade global de descendentes de africanos.
Voltando, o que isso tudo nos diz é que a resposta mais direta que eu poderia dar para a pergunta inicial “de onde vem essa bagunça?” é a escravidão colonial. Ela que destruiu a conexão dos povos africanos com muitos de seus descendentes e criou denominações inconsistentes para todos. O Negro, o black ou o afro-latino são invenções humanas, marcadores sociais e não genéticos ou sanguíneos. Por isso os povos negros tentam ressignificar e construir algo para sí com essas ideias pelo mundo e é muito natural que o entendimento histórico dos termos seja modificado pelo tempo e pela consciência social.
Atualmente é comum encontrarmos correntes mais universais da identidade negra nos EUA. A Professora Celeste Watkins-Hayes, professora de estudos afro-americanos na Northwestern University diz: “Black” é frequentemente um padrão melhor que reconhece e celebra a raça, a cultura e as experiências vividas de pessoas em todo o mundo. “O movimento que você vê agora em direção ao preto é realmente reconhecer a natureza global da negritude”. (Leia aqui)
Ainda teremos muitas discussões sobre o assunto, pois infelizmente, na mesma proporção crescem movimentos que tentam ainda centralizar a discussão naquele país e se diferenciar das outras comunidades negras. Eu contei mais sobre essas experiências e como alguns brasileiros enfrentam elas nos EUA no episódio do meu podcast. Dá o play e fica ligado que eu volto com mais informações pra vocês em breve.
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