A psicóloga e diretora do Instituto da Mulher Negra de Portugal, Shenia Karlsson, é convidada do novo episódio do podcast Fala Diversas, apresentado pela jornalista Silvia Nascimento.
Brasileira, nascida e criada no Rio de Janeiro, Shenia atualmente mora em Portugal e se tornou referência na área em atendimentos especializados em diversidade.
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“A minha minha atividade clínica sempre teve esse braço do social. Eu comecei vários projetos em comunidades no Rio de Janeiro, então eu sempre trabalhei com as mulheres negras. Eu devo tudo as mulheres negras. Quem eu sou, o que eu faço. São elas que sustentam a minha atividade diariamente. Num mundo em que nem mulher, por muito tempo, a gente era considerada”.
Antes de morar em Portugal, Shenia realizava projetos nas comunidades negras do Rio de Janeiro e lá atende muitos imigrantes do continente africano, a maioria cabo-verdianos e angolanos.
Na terapia, o maior desafio com os pacientes negros para Shenia, é a descolonização da mente.
“O primeiro indicativo que eu levo em consideração é analisar em qual nível de construção de negritude a pessoa está. A possibilidade da gente poder mudar o nosso olhar. Em termos de sujeito, eu vejo as pessoas negras como interditadas. Porque é como se a gente fosse convidado sempre a viver muito longe do que a gente é. É assim que a sociedade estruturalmente racista funciona. Mas infelizmente a gente também participa da manutenção [deste sistema] em alguma medida”.
Shenia detalha como funciona o atendimento: “Por exemplo, eu sou uma pessoa negra, mas como é a minha rede de apoio? Quais são os saberes que eu estou lançando mão? Quais são, principalmente, as relações de afeto que eu vou estabelecendo? São com pessoas que eu me identifico ou são pessoas que não se parecem comigo. Então é tudo sobre entrar num processo de se aproximar de si cada vez mais e isso é muito revolucionário”.
A falta de representatividade negra é um dos fatores mais impactantes na colonização da mente, segundo a psicóloga. “Quando a gente só é rodeado e bombardeado de modelos de ‘sujeito’ e a gente não se vê incluído, é como se a gente não pudesse existir. A filosofia africana, estudar em civilizações antigas e ir atrás de modelos de potência, pode ajudar, ainda mais crianças, adolescentes, literaturas mais afrocentradas”.
“O racismo ele tem várias dimensões. Mas a gente não percebe que a dimensão mais poderosa do racismo é a dimensão psicológica, porque ela sustenta todas as outras. A construção da negritude um processo tão profundo e tão doloroso, tem tantas, mas eu acho que é libertador porque quando a gente fala em sonhar, a gente tem que falar de liberdade”, explica.
Uma negra de classe média no Rio de Janeiro
Diferente da maioria dos negros e negras do Brasil, Shenia não teve um desses momentos de descobrir-se negra. Crescida em uma família de classe média, e frequentando espaços brancos, ela relembra que eles sempre foram vítimas do racismo.
“Meus pais são empresários, é uma linhagem de família de empreendedores, desde o meu bisavô, que foi escravo, depois foi liberto, meu avô com 17 anos enriqueceu, é um homem retinto, do Espiríto Santo, foi tropeiro. Eu sei toda a história da família, são artesãos que manipulavam o couro, a selaria, materiais e artigos para instrumentos musicais. Os meus pais são empresários da área do petshop”, detalha.
“Eu lembro dos meus pais, dos carros que eles tinham na época, carros bonitos, da polícia parando meu pai, o tempo inteiro, não sei a quantos quilômetros, pra saber se o carro era dele mesmo. Ele era meio invocado:’Que é meu? Eu comprei à vista’. Então eu cresci sabendo que eu era negra, eu fiquei triste vendo meu pai tão parado pela polícia o tempo inteiro questionando se aquele carro era dele ou não”, diz Shenia.
Já sobre a sua mãe, “super empoderada, dirigia, que era tão difícil ter mulher negra naquela época, empresária, que já tinha um carro, andava toda arrumada. Em lugares e restaurantes em passeios mais embranquecidos, geralmente éramos a única família negra naqueles espaços, então eu sou uma negra que nunca deixaram eu esquecer que eu era negra”.
Os negros no mundo corporativista
No consultório, Shenia atende diversos pacientes, vítimas de racismo no ambiente de trabalho. Apesar de ser uma situação delicada, ela diz que gosta sempre de resgatar o objetivo indivíduo.
“Muitas vezes a gente se perde com os nossos objetivos, quando a gente quer uma promoção ou assumir um cargo. Mas qual o seu objetivo? É fazer amigos? É fazer parcerias? Sair do trabalho e ir para um happy hour?”, ela questiona nas terapias.
“Se você tem uma rede forte de acolhimento, você não vai sentir falta, de ter alianças de afeto no trabalho. Você tem que entender quais são os significados políticos que o seu corpo tem naquele espaço e se proteger o máximo possível”, explica Shenia.
Para a psicóloga, a partir do momento que as pessoas resgatam seus objetivos, ela param de sofrer por querer aceitação de pessoas brancas no ambiente de trabalho. “É uma questão de descolonizar os afetos. Com isso, você se liberta”.
O mesmo acontece com os jovens que estão nas universidades fazendo graduação e pós-graduação, que chegam adoecidos por não se sentirem validados pelos professores, relata Shenia.
“Não se procura acolhimento em lugares de opressão. É entender que em lugares de opressão não foram feitos para nós”, ressalta.