“É mais fácil ver negros em anúncios na Alemanha do que no Brasil”. Durante muitos anos, essa frase representou como funcionavam as agências de publicidade no país, que negavam a identidade dos brasileiros, de maioria negra, até em campanhas de clientes com forte apelo popular.
Se hoje, nas campanhas e ações institucionais, a diversidade é mais presente, tendo pessoas negras protagonizando campanhas de grandes marcas, a negação do corpo e da cultura negra dentro do espaço de trabalho das agências de publicidade tem sido uma experiência simbolicamente violenta e psicologicamente traumática para publicitários negros.
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O Mundo Negro recebeu depoimentos de profissionais que trabalharam na WMcCann, uma das maiores agências de publicidade do país, que preza pela diversidade no casting de suas campanhas, mas que não tem apresentado o mesmo empenho em acolher a diversidade em seu time de trabalho, mesmo contratando uma empresa de consultoria racial. A WMcCann é uma agência de publicidade de renome global, parte do McCann Worldgroup e da Holding Interpublic.
Antes de apresentar os relatos dos funcionários da agência de publicidade, é importante ressaltar que as fontes, pessoas negras e brancas, ex e atuais funcionários, foram mantidas no anonimato para garantir sua segurança e proteger sua identidade. O anonimato foi concedido devido à sensibilidade do assunto e ao temor de possíveis represálias dentro do ambiente de trabalho. As informações apresentadas foram verificadas por meio de múltiplas fontes e corroboradas para assegurar sua precisão.
“Não aconselho nenhuma pessoa preta ir para essa agência, eles pagam super bem, mas parte desse pagamento vai para remédio de todo estresse e humilhação que o ambiente proporciona”, disse um dos entrevistados ao relatar sua experiência dentro da WMcCann.
O ambiente publicitário já é conhecido como um espaço de grande pressão por resultados, o que resulta em adoecimento mental de forma regular. Mas no caso da WMcCann, para além da cobrança de performance, os entrevistados descrevem experiências onde sua cor é indiscutivelmente a motivação para falas e situações que podem ser caracterizadas como racismo.
Outro entrevistado revelou que testemunhou comentários racistas sendo proferidos em voz alta, mesmo na presença de profissionais negros. “Quando estive lá, presenciei um diretor de arte expressando seu receio em contratar pessoas negras, alegando que eles não desempenham bem suas funções, que não trabalham bem”.
Um dos casos relatados por dois entrevistados cita uma situação com uma pessoa e religião de matriz africana. Um diretor disse que “ela não se vestia bem”, termo usado em outros casos ao se referirem a pessoas negras da equipe. “O que todas essas pessoas que sofriam essa crítica tinham em comum era a origem negra e periférica”, confirmou outro entrevistado sobre os comentários relacionados a maneira com que os publicitários negros se vestiam.
O advogado Hédio Silva detalha o que essas situações significam em termos jurídicos. “O assédio moral é genérico. Nesse caso, há uma legislação específica sobre aviltamento, constrangimento, ultragem, etc., insulto resultante de discriminação racial e religiosa. Há uma previsão normativa específica que é diferente do assédio moral”.
Para ele, demitir a pessoa que cometeu um ato racista também não resolve o problema. “Há tratados internacionais da OIT [Organização Internacional do Trabalho], dos quais o Brasil é signatário, que impõem uma série de obrigações, inclusive preventivas, para as empresas que não são adotadas no Brasil. Elas são preventivas e elas são promocionais, devem ser promocionais da igualdade, promocionais da diversidade”, ressalta.
DEPOIS DE UMA REUNIÃO DE 3 HORAS JUNTOS, ELE ME TRATOU COMO UMA COPEIRA
A perversidade do racismo muitas vezes está no que não é dito, mas ao mesmo tempo é nítido e óbvio. Uma das entrevistadas descreveu uma situação em que um diretor de mídia usou a tática de desmoralização, o clássico “vou te lembrar onde é o seu lugar”, para abalar a confiança de um dos nossos entrevistados.
“Eu trabalhava como assistente de atendimento na agência, em um dos meus dias de trabalho eu estava em uma reunião presencial onde só tinha eu e minha dupla de trabalho assistindo. O resto do time estava online. Um diretor de mídia apresentou essa reunião com a gente na sala e a reunião durou 3 horas. Após isso, fomos almoçar. Eu estava na copa e depois de um tempo esse diretor chegou lá e começou a me perguntar sobre as opções de lanche na copa (antigamente tínhamos funcionárias que trabalhavam lá). Eu avisei que não trabalhava ali e ele insistiu e me perguntou se eu não trabalhava na copa, mesmo eu avisando que não. Depois de passar 3 horas em reunião com ele olhando para minha cara, ele continuou sem acreditar que eu era funcionária da agência”.
Essa situação não se encerrou por aí. “Depois disso, ele passou os próximos dias me encarando demais. Chegou a um ponto de desconforto que eu tive que reportar, fui incentivada por outra profissional negra na época e pouco tempo depois descobri que essa situação tinha sido banalizada pelas pessoas que ocupavam o mesmo espaço que ele, como se eu estivesse exagerando pela forma como me senti”.
“VOCÊ ESTÁ CONTRATANDO MUITOS NEGROS”
“Quando eu fui mandado embora, disseram que eu tinha contratado muitos pretos para a minha equipe”, disse um dos entrevistados que acrescentou que “existe uma meta de contratação de pessoas pretas, mas essas pessoas não são contratadas”.
Procuramos a WMcCann, que por meio de sua assessoria de imprensa afirmou ser contra qualquer tipo de ato racista ou discriminatório. “Não toleramos racismo, preconceito ou quaisquer atitudes que firam nosso código de ética. Sabemos que ainda há muito a ser feito e seguimos nossa responsabilidade enquanto empresa, que faz parte da sociedade, trabalhando como aliados contra o racismo estrutural e todos os tipos de preconceito”.
Mais especificamente sobre metas, foram apresentados os seguintes dados. “Atualmente, a agência é formada por 34% de pessoas negras, sendo 21% em posições de liderança e 57% em portas de entrada. Nossa meta é chegar a 37% de pessoas negras em 2024 e 24% na liderança. Esses dados são divulgados periodicamente para toda a agência e mercado. Estamos comprometidos com nossas metas de Diversidade e Inclusão e com iniciativas para tornar nosso ambiente de trabalho mais acolhedor e inclusivo”, afirmou o comunicado enviado pela agência.
Sobre os espaços de denúncias de racismo, a empresa afirma ter “um canal de denúncias global, divulgado constantemente desde a integração, e espalhados por toda a agência, e canal de acolhimento interno confidencial com especialistas em diversidade. Ambos são prontamente atendidos, respondidos e tratados com seriedade”.
Mais de um entrevistado afirmou que, apesar da empresa investir em uma consultoria de diversidade racial, as ações não são postas em prática.
“A WMcCann fica mostrando internamente que tem mais de 30% de negros, mas a verdade é que no meu dia a dia vejo poucos. Em posições de liderança, é nítido que não tem quase ninguém. É uma desigualdade evidente e escancarada”.
Os entrevistados que afirmaram ter tentado denunciar situações que entenderam como racistas foram desencorajados, culpabilizados e desacreditados.
“Existe um processo com a Wmccann que fazemos um curso quando entramos, e o global fala sobre racismo e sobre como fazer as denúncias, mas quando isso acontece, as denúncias não chegam no global por algum motivo”, disse um entrevistado.
GRUPO PUBLICITÁRIOS NEGROS OFERECE ACOLHIMENTO A VÍTIMAS DE RACISMO
O caso da WMcCann não é isolado, afinal o Brasil continua sendo um dos países mais racistas do mundo. Jovens publicitários selecionados em programas de diversidade são as vítimas mais frágeis desse sistema perverso onde empresas faturam justamente por ostentar sua “diversidade”.
Se esses negócios falham ao acolher quem sofre dentro do seu escritório, há alternativas para as vítimas. O grupo Publicitários Negros é uma opção. Falamos com eles sobre as denúncias recebidas.
“Acompanhamos de perto o mercado publicitário e de comunicação, em especial nos aspectos de diversidade e inclusão racial. Nem todo o mercado está preparado ainda para a efetiva participação de pessoas negras em seus ambientes e trabalhos, então, ainda vemos denúncias e casos de saúde prejudicada por uma série de atravessamentos e situações desalinhadas com ambientes saudáveis de trabalho e que estimulam a participação e contribuição de grupos subrepresentados. Os casos que chegam a nós são acolhidos e procuramos dar apoio quanto à carreira da pessoa, de forma que o talento não se perca por conta das violências que o racismo gera para os profissionais negros. Estamos juntos com toda a comunidade de publicitários negros e abertos a dialogar com as agências aliadas da inclusão racial e antirracistas”.
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