Mundo Negro

“Mulheres negras sambam para que mulheres brancas lucrem”

Foto: Reprodução/Freepik

Li essa frase em algum momento, durante o carnaval, rolando o feed numa rede social e me inquietou. E, apesar de eu já ter mencionado as lacunas da festa mais democrática do Brasil na minha última publicação, não consegui ignorar essa “provocação”. O carnaval brasileiro é uma celebração profundamente enraizada na cultura negra, com figuras históricas como Tia Ciata, Chiquinha Gonzaga, Dona Ivone Lara e Mãe Menininha do Gantois e vem desempenhando papéis fundamentais na democratização e diversidade da nossa maior manifestação cultural. No entanto, apesar dessa base cultural, a ascensão e representação das mulheres negras nos espaços de liderança e destaque do carnaval ainda são limitadas.

Reconhecido mundialmente como manifestação cultural de raiz predominantemente negra, a celebração popular movimenta bilhões na economia nacional através do turismo, geração de empregos e produção cultural. No entanto, quando analisamos as estruturas de poder e liderança por trás desta grande celebração, emerge um paradoxo inquietante: as mulheres negras, principais protagonistas na preservação das tradições que dão forma ao carnaval, continuam sub-representadas nos espaços de decisão e poder econômico.

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O paradoxo da representatividade

Enquanto a presença feminina em posições de liderança dentro do setor carnavalesco vem crescendo, a representatividade de mulheres negras não acompanha este avanço na mesma proporção. Observamos um fenômeno no qual a cultura de origem negra é celebrada, comercializada e lucrativa, mas as descendentes diretas desta herança cultural permanecem à margem das principais estruturas de poder.

Segundo dados do IBGE, 56% da população brasileira se autodeclara negra (preta ou parda), com as mulheres negras representando cerca de 28% dos brasileiros. No entanto, quando observamos o cenário de lideranças nos grandes eventos carnavalescos, este percentual cai drasticamente.

De acordo com o levantamento realizado pelo Instituto Ethos em seu relatório “Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas”, apenas 0,4% dos cargos executivos são ocupados por mulheres negras. No setor de entretenimento e eventos, a situação não é diferente.

Um estudo do Observatório da Diversidade na Mídia demonstrou que, apesar de o carnaval movimentar aproximadamente R$ 8 bilhões na economia brasileira (dados da CNC – Confederação Nacional do Comércio), as mulheres negras comandam menos de 10% dos grandes projetos carnavalescos, sejam blocos, camarotes ou escolas de samba.

Lideranças femininas: um avanço com lacunas

Apesar do destaque ao crescimento da liderança feminina em grandes camarotes e eventos, uma análise mais aprofundada revela que estas posições são majoritariamente ocupadas por mulheres brancas de classe média-alta. Enquanto isso, mulheres negras continuam concentradas em funções operacionais, criativas ou como atrações, raramente alcançando as posições estratégicas ou de propriedade dos empreendimentos.

As exceções existem e merecem destaque: Danielle Pires, é responsável pela implantação das áreas de Sustentabilidade Corporativa e DE&I da Premium Entretenimento, realizadora do Camarote Salvador, que se destaca como uma das maiores festas privadas de carnaval no Brasil. A intencionalidade e o compromisso tornou o empreendimento uma plataforma de transformação por meio da sustentabilidade com propósito socioambiental, inevitavelmente perpassando pela pauta racial, ela e outras lideranças têm quebrado barreiras, no entanto, são casos isolados em um universo onde a regra continua sendo a exclusão.

Um setor que se alimenta tão profundamente da cultura negra deveria ter como prioridade a reparação histórica através da inclusão efetiva de mulheres negras em todas as camadas de sua estrutura. Não se trata apenas de justiça social, mas também de coerência estratégica – um carnaval que valoriza suas raízes e representantes originais tende a ser mais autêntico, inovador e sustentável a longo prazo.

Algumas iniciativas apontam caminhos possíveis:

O carnaval brasileiro tem o potencial de ser um laboratório de transformação social e econômica, desde que enfrente seus próprios paradoxos. A responsabilidade social do setor passa necessariamente por rever suas estruturas de poder e abrir espaço para que as mulheres negras ocupem não apenas o centro do desfile, mas também as mesas de decisão.

A verdadeira democratização da festa mais popular do Brasil só acontecerá quando aquelas que sempre estiveram na linha de frente da preservação cultural – as mulheres negras – puderem também estar na liderança dos negócios que movimentam bilhões durante o período carnavalesco.
O setor tem demonstrado capacidade de adaptação e inovação ao longo dos anos. Agora, é preciso direcionar esta capacidade para a construção de um carnaval economicamente próspero e socialmente justo, onde a representatividade não seja apenas um elemento decorativo, mas estrutural.

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