Por Carol Cirilo, Psicóloga, pesquisadora, discotecária e cantora nas horas vagas.
A chegada da MTV no Brasil, em 1990, trouxe consigo mudanças comportamentais de uma geração de jovens e adultos espectadores da emissora. À época, o canal dedicado à transmissão de videoclipes e conteúdos musicais diversos era veículo de informação, entretenimento e pauta das conversas entre amigos. A internet ainda dava os primeiros passos no Brasil, o Youtube não sonhava em existir e poucos tinham acesso a conteúdos digitais relacionados à música, sobretudo audiovisuais. Assim, a MTV e algumas revistas especializadas eram “influencers de uma geração analógica”, encantada pela diversidade do universo musical que se apresentava.
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Assistir, no conforto do lar, à performance da sua banda preferida, ver os rostos, os figurinos, os corpos que deram origem àquilo que se ouvia – e àquilo que ainda não se ouvia ou conhecia – era o grande fascínio que a MTV proporciona. Como acontece hoje nas plataformas digitais, muitos passavam horas na frente da TV, ávidos pelo que viria depois e depois. A emissora era o vício dos amantes da música. Havia quem recomendasse videoclipes que assistiu, baixasse músicas que “descobriu” e mais ainda: quem gravasse a programação em VHS para alimentar seu acervo audiovisual.
Mas é imprescindível relatar um fascínio à parte: o das mulheres negras espectadoras da MTV. Assistir aos videoclipes de artistas como Whitney Huston, Mary J. Blidge, Janet Jackson, Missy Elliott, Destiny’s Child, Tony Braxton, entre tantas outras, despertava algo indizível. Representatividade é um termo relativamente novo, desconhecido da maioria naquele tempo. Contudo, o que sentíamos ao ver mulheres talentosas e glamourosas em sua negritude despertava uma gama de sentimentos positivos. Mel B (Spice Girls) representava o magnetismo encantador dos cabelos crespos, em um período em que éramos bombardeadas e muito influenciadas por um padrão de beleza eurocêntrico.
E por falar em cabelos, as tranças de Alicia Keys e Lauryn Hill, o black power de Macy Gray, os dreadlocks de Tracy Chapman, os penteados de Des’ree e os turbantes de Erykah Badu sinalizaram novos caminhos estéticos. Mesmo não tendo muita afinidade com o pop naquele tempo, era impossível ignorar os videoclipes destas artistas e não me encantar com as performances. Era impossível não me sentir mais satisfeita com minha própria aparência. Precursoras como Tina Turner, Donna Summer, Sade e Grace Jones também compunham a programação da MTV. Em meio aos lançamentos, nossa ancestralidade musical estava presente e indicava o caminho percorrido até ali.
Nos eventos que participo como discotecária, certa vez, enquanto tocava Waterfalls do trio TLC, uma colega relatou que sabia dançar como as “meninas no clipe”, pois acompanhava a coreografia pela MTV. É perceptível a empolgação de mulheres negras nas pistas de dança, quando há artistas negras no setlist. Não se trata somente de batidas dançantes e melodias ou letras marcantes, mas de identificação com todo um conjunto de símbolos que representam muito para nós. Os olhos brilham, o sorriso se abre e o corpo se movimenta harmoniosamente, em meio a memórias de trechos marcantes de um videoclipe. Saudosismo e “representatividade old school”.
Obviamente, por questões socioculturais e do próprio mercado musical, a visibilidade das artistas gringas na telinha era maior. Muito do que era veiculado no Brasil chegava por meio da MTV norte-americana. Ainda assim, a MTV brasileira, na década de 90 e nos anos 2000, deu visibilidade ao que era produzido aqui. Lembro-me de Paula Lima em Senhor Tempo Bom (Thaide e DJ Hum), de Daúde em Pata Pata, de Thalma de Freitas em Tranquilo, do trio Sublimes em Boneca de Fogo e de Negra Li iniciando carreira solo. E me lembro de um grande marco, que ecoava o grito universal de negras e negros: Elza Soares com o videoclipe de A Carne transcendeu as barreiras do entretenimento. O clipe dirigido pela Conspiração Filmes foi lançado em 2002, no dia da Consciência Negra. A composição de Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette ganhou força e alcance com a interpretação de Elza, escancarando na MTV a força e a fragilidade do povo negro. Parafraseando o título do disco, arrepiou “do cóccix até o pescoço”.
Ver gente como a gente no mainstream empoderou, abriu portas, contribuiu para que novas vozes e novos corpos evidenciassem, por meio da música e do audiovisual, as dores e as belezas da negritude.
“Mas mesmo assim
Ainda guardo o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor”
(A Carne)