Texto: Rodrigo França
Na tessitura de histórias que atravessam mares e continentes, encontro-me confortável em dizer que a morte não significa “fim” — pelo menos não no universo de sentido de quem caminha sob a luz de Candomblé e do Ifá, via das tradições de Yorubá. Aqui, a partida reverbera como passagem, como traço contínuo entre quem parte e quem permanece, entre o visível e o invisível, entre o alimento servido à mesa e o sussurro ancestral que se faz memória.
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Na lógica ocidental-colonial, frequentemente a morte é enredo de medo, de vazio, de ausência absoluta. Há separação radical, término irreversível. A saudade, quando aparece, muitas vezes carrega amor misturado a desamparo. Quero propor outra narrativa: a morte vista como mobilização de socialidade, como gratidão expandida, como círculo que se fecha e reabre em outro plano — sem hierarquia entre “viver” e “morrer”, mas com deslocamento de forma e presença. E não é sobre religiosidade e sim cultura.
As tradições Yorubá ensinam que a trajetória humana é marcada pela vida, a morte e o renascimento habitam em uma trama contínua. Quando alguém parte em paz — no sentido de “cumpriu sua missão”, de “voltou para a origem”, de “torna-se ancestral” — celebra-se a passagem, honra-se o nome e abre-se o espaço de conexão entre vivos e mortos.
Na prática de meu encontro pessoal com essa tradição, descubro que a saudade amadurece no alimento. Toda vez que preparo, sirvo e como o prato predileto de meu pai ou de minha avó, sinto que estamos juntos novamente. A comida se torna ponte. O calor do azeite, o cheiro da folha, o fogo que cozinha, tudo isso não só rememora, mas comunica. Ele está ali em mim, nela em mim, no tempo que não é mais cronológico, mas existencial. A saudade não pesa; ela celebra. A morte não anula; ela transforma e convida ao ciclo.
Essa lógica de continuidade rejeita o silenciamento da morte. Não é sobre esconder o que se foi, mas sobre integrar o que se foi. Sobre saber que o desaparecimento físico não encerra o laço social. Os ancestrais, nas práticas Yorubá, continuam atuantes, protetores, conselheiros. A morte torna-se uma outra presença.
E num mundo que insiste em adotar a finitude como derrota, a gratidão emerge como ferramenta política e espiritual. Ser grato àquele que partiu, pela lição, pelo afeto, pela semente deixada, é reconhecer que a tradição não está morta, que a herança vive, que somos redes. Tenho aprendido que agradecer à ancestralidade, ao chão de onde viemos, é também declarar que nosso projeto de futuro se sustenta nessa continuidade.
Quando digo “gratidão à vida do que se foi”, recuso o esquecimento, a repressão da dor, o lamento como estagnação. Em vez disso, acolho a saudade como reverência, e dessa reverência brota uma potência: a certeza de que não estamos sozinhos, que somos compostos, que somos filhos e filhas de múltiplas partidas e chegadas.
Talvez seja preciso ressignificar o termo “luto”. No nosso contexto, abraçar o luto como se fosse somente dor pode limitar o sentido amplo que a passagem revela. O que vivencio e desejo compartilhar é um luto que dança com a celebração; que se curva à memória e ao alimento; que não fecha em tristeza, mas abraça o mistério da transformação.
Assim, na lógica que nos habita, não ocidental, não colonial, a morte revela-se como elo. Como devolução ao grande fluir, como reentrada no concerto dos ancestrais, como convite para olhar a vida com outra lente: a da continuidade, da reverência, do alimento, da saudade que nutre.
Quando eu cozinhar e comer o prato de meu pai, ele estará lá. Quando eu cantar e tocar a “nossa música”, minha avó caminhará à beira do som. Não porque regresse no corpo, mas porque permanece no sentido. E eu agradeço. Agradeço todos os dias. Agradeço o que foi, o que é e o que virá.
E que essa gratidão ressoe como novo paradigma de convivência; entre vivos, entre os que se foram, entre as gerações que insistem em existir para além da lógica da dor isolada. Pois, como diz uma das sabedorias Yorubá: “A pessoa que tem bom nome vive mais do que as montanhas.”
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