A trajetória de Mônica Sampaio atravessa dois mundos que, à primeira vista, parecem distantes: a engenharia elétrica e a moda. Mas quando observamos sua história com mais atenção, fica claro que essa travessia não é ruptura, é afirmação. Depois de anos em ambientes majoritariamente masculinos, da aviação ao Exército Brasileiro, Mônica decidiu reescrever o próprio destino. E, nessa reinvenção, descobriu espaço para uma moda que não apenas veste, mas reivindica memória, estética e pertencimento para mulheres negras que nunca se viram representadas nas vitrines brasileiras.
Fundadora da Santa Resistência, marca que traduz ancestralidade africana em linguagem contemporânea, Mônica leva para a passarela histórias que ela mesma precisou escavar: rastros de origem apagada, símbolos que foram calados e narrativas que não chegaram até nós. Seu processo criativo nasce desse gesto político, contar o que não nos deixaram lembrar, criar novas portas de entrada para identidade e cultura, e colocar mulheres negras no centro da construção estética do Brasil.
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Nesta entrevista exclusiva ao Mundo Negro, ela fala sobre coragem, ancestralidade, apagamento histórico, afrofuturismo, representatividade e o legado que deseja deixar para as próximas gerações de criadores negros.






1. Você começou como engenheira elétrica e hoje é estilista. Como foi fazer essa transição e o que ela te ensinou sobre coragem e reinvenção?
“Tenho muito orgulho da minha trajetória profissional, das minhas conquistas no mundo corporativo, majoritariamente masculino. Trabalhei na área de aviação, em multinacional alemã e no Exército Brasileiro. Posso afirmar que sou realizada profissionalmente. Ser Engenheira e também militar me deram disciplina, resiliência para empreender e também organização para gerir minha própria empresa.
A mudança veio em decorrência de uma necessidade de maior qualidade de vida e da culpa que, nós mães e profissionais, carregamos. Queria mais tempo com minha família. E literalmente virei a chave. Comecei do zero em uma carreira totalmente desconhecida.
Sempre houve uma inquietação minha com relação ao que era oferecido como moda no Brasil. Eu não via uma moda que contemplasse a mulher consciente de sua negritude, madura, profissional, poderosa e marcante e, como muitas, comecei desenhando para mim. Eu já observava o interesse das pessoas e elogios, então quando decidi empreender, sabia que seria na moda. Fundei a Santa Resistência e tem sido a minha paixão desde sempre.”
2. A Santa Resistência traz muitas referências da ancestralidade africana e da cultura feminina. Como essas histórias do passado inspiram o que você cria hoje?
“Falarei da minha penúltima coleção, onde abordei literalmente a cultura africana. Todo o meu processo criativo parte de uma história que quero contar e da minha percepção em relação a essa história. Quando você conversa com um brasileiro com sobrenome europeu, asiático ou norte-americano, todos sabem sua ascendência. E nós? Pessoas como eu? Com a minha cor de pele? Nossa ascendência foi apagada, usurpada. Trocaram os nomes de nossos tataravós. Eu queria saber e contar minha ancestralidade para minha filha para que ela possa contar para os filhos dela. Iniciei minha pesquisa pela minha própria história. Chegamos na África Oriental e na tribo Maasai, uma riqueza cultural impressionante. Criei três estampas: uma inspirada no Shuka; outra com animal print em degrade azul representando o mar de Zanzibar; e a última celebrando as mulheres pescadoras de Zanzibar. A mensagem era transportar a riqueza cultural dos Maasai para o universo da moda, representando a simbologia e a força desse povo e também celebrando o afrofuturismo.”
3. Como você enxerga a representatividade da mulher negra na moda brasileira hoje e o papel da Santa Resistência nesse cenário?
“Enxergo que não evoluímos muito. As referências continuam embranquecidas. Temos poucas estilistas negras e, quando não são inviabilizadas, são usadas como token ou cota para justificar a ausência. Sou uma mulher negra e faço moda, mas isso não me define. Quando falamos de estilistas brancas, não referendamos a cor da pele, apenas o trabalho. Então por que é necessário quando se trata da pele negra? A atriz negra, a apresentadora negra, a escritora negra… parece sempre um “apesar de”.”
4. Olhando para o futuro, que legado você gostaria de deixar para novas gerações de criadores negros e negras no Brasil?
“Quero que a minha moda ultrapasse fronteiras e seja vista como uma moda genuinamente brasileira e com valores sustentáveis.
Que mais designers negros surjam no mercado, mostrando a possibilidade de ter uma profissão onde, até pouco tempo atrás, éramos pouquíssimos. Quero que olhem para mim e pensem: “Se ela está ali, se ela está fazendo isso… eu também posso.””
A força de Mônica Sampaio está justamente nesse movimento de costurar passado, presente e futuro sem perder de vista quem ela é e quem quer alcançar. Sua moda nasce de uma reivindicação, mas também de um gesto de afeto, de cuidado e de reconstrução de memórias que o Brasil tentou apagar.
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