Enquanto as discussões sobre a votação do Projeto de Lei 1940/24, que equipara o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, crescem, o debate sobre o perfil das vítimas de estupro, que por lei têm direito ao aborto em casos de violência sexual, passa a ser um importante ponto crucial de observação sobre quem poderá sofrer as piores consequências diante de uma legislação que pode punir as vítimas, enquanto é aplicada de maneira branda aos agressores, os verdadeiros criminosos nesses casos.
Dados do Anuário de Segurança Pública, lançado em 2023, mostram que no ano de 2022 o Brasil registrou 74.930 casos de estupro. Mais da metade (56.820 mil) deles foi registrado como estupro de vunerável, quando o crime é praticado contra menores de 14 anos, o que significa que 61,4% das vítimas têm entre 0 e 13 anos de idade. Além disso, a maior parcela das vítimas é negra, somando 56,8% e quase 90% dos agressores são conhecidos das vítimas, sendo 64,4% deles familiares.
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Em entrevista ao Mundo Negro, a advogada especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídios, Fayda Belo, explicou porque meninas negras podem ser as maiores vítimas caso o PL 1940/24 seja aprovado: “Mais da metade dessas meninas vítimas de estupro de vulnerável são meninas negras, o que demonstra que esse projeto de lei é claramente misógino, mas também tem cunho racista, já que visivelmente duplamente penalizará em sua maioria meninas negras violentadas sexualmente. É preciso lembrar que as violências mais graves, segundos os dados, são praticados contra mulheres e meninas negras, que é claramente o grupo mais vitimizado”.
Na noite da última quarta-feira, 12, a Câmara aprovou um requerimento de urgência do Projeto de Lei 1904/24. O projeto, de autoria do deputado federal, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), é visto como uma penalização das meninas e mulheres vítimas de estupro que optaram por interromper a gestação decorrente da violência. A elas seria imposta uma pena mais severa do que as aplicadas aos estupradores.
O artigo 213 do Código Penal, estabelece que a pena para quem comete o crime de estupro é de 6 a 10 anos de prisão quando a vítima é adulta. Nos casos em que o estupro é praticado contra menor que tenha idades entre 14 e 18 anos, há aumento na pena do criminoso, que pode ir de 8 a 12 anos de reclusão. Se a vítima for menor de 14 anos de idade, a pena pode chegar a 15 anos. No caso de aborto após a 22ª de gestação, a pena prevista pelo PL é de até 20 anos.
Leia a entrevista completa abaixo:
Atualmente, quais são os principais desafios legais enfrentados por meninas vítimas de estupro no acesso à justiça quando a violência resulta em uma gravidez?
Na verdade os desafios são mais filosóficos religiosos do que realmente legais, já que além do Código Penal, que desde 1940 permite o aborto em caso de gravidez resultante de estupro (art. 128), temos diversas outras legislações como a Lei do Minuto seguinte (lei 12.845/13), que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, demonstrando que a principal barreira para que meninas violentadas sexualmente tenham seus direitos concedidos, é humano, ou seja, as pessoas que deveriam acolher essas vítimas e fazer cumprir a lei, não o fazem por convicções filosóficas religiosas, mesmo sabendo que direito não se confunde com religião, pois se o fizesse seria uma clara afronta à laicidade do Estado descrito em nossa Constituição Federal.
Para, além disso, fazendo um recorte de raça, segundo o Instituo Patrícia Galvão, os dados mostram que mulheres negras não acessam as políticas públicas e tem menos acesso à informação, e ainda necessário lembrar que, por serem as mulheres negras as mais revitimizadas no sistema de justiça, são as que mais têm medo de busca-lo para garantir seus direitos, quando esse acesso ao aborto legal lhes é negado.
- Como o PL 1904/24 impacta especificamente o direito à saúde reprodutiva das meninas vítimas de violência sexual, considerando o contexto legal atual?
Em um primeiro momento, precisamos reiterar que criança não é mãe. Criança tem que ser criança.
Além de violar os direitos fundamentais dessas meninas assegurados pela Constituição Federal, viola igualmente vários dispositivos legais do Estatuto da criança e do adolescente, o que se mostra é que esse Projeto de lei duplamente penaliza meninas que já tiveram parte de sua infância roubada pelo abuso sexual, e também coloca em risco a vida dessas crianças que não possuem ainda um sistema reprodutivo apto a receber uma gestação, já que os dados mostram que, quando o corpo está imaturo, a chance de morte é quatro ou cinco vezes maior do que em uma gravidez em mulheres de 20 a 24 anos.
Sem esquecer que estamos falando sobre crianças no sentido físico, legal e psicológico, o que torna ainda mais absurdo referido projeto.
- Podemos afirmar que meninas negras seriam a maiores vítimas caso essa PL seja aprovada e porque?
O ultimo Anuário Brasileiro de Segurança Publica, demonstrou que o Brasil teve o maior aumento de estupros da história do país, e que 60% desses estupros foram estupros de vulneráveis, ou seja, praticados contra crianças e adolescentes de até 13 anos de idade.
Quando esses dados são recortados, por gênero e raça, vemos que das 04 crianças estupradas por hora no Brasil, 07 a cada 10 delas são meninas, e mais da metade dessas meninas vítimas de estupro de vulnerável são meninas negras, cerca de 57%, o que demonstra que esse projeto de lei é claramente misógino,mas também tem cunho racista, já que visivelmente duplamente penalizará em sua maioria meninas negras violentadas sexualmente.
É preciso lembrar que as violências mais graves, segundos os dados são praticados contra mulheres e meninas negras, que é claramente o grupo mais vitimizado.
- Quais são os precedentes jurídicos relevantes que poderiam ser invocados para contestar a constitucionalidade do PL 1904/24, especialmente no que diz respeito à proteção dos direitos humanos das meninas?
Um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito, inserido no artigo 1º da Constituição Federal é a dignidade da pessoa Humana. Paralelo a isso, a mesma Constituição Federal traz como direito fundamental, ou seja, irremovível, irrenunciável e que não pode ser suprimido inclusive pelo legislador, a não submissão de nenhum brasileiro a tratamento desumano e degradante, bem como a igualdade de gênero e a proteção integral a criança e adolescente.
Ao julgar o Habeas Corpus 124306 do Rio de Janeiro, que pedia a soltura de uma mulher que realizou um aborto, o Ministro Roberto Barroso do STF, proferiu um voto extremamente claro sobre o quanto a criminalização é incompatível com nosso sistema constitucional, relembrando que a criminalização de uma mulher ao optar por um aborto viola direitos fundamentais elencados na nossa Constituição Federal de 1988 como os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve manter o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da mulher, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.
Transferindo isso para crianças e adolescentes que sequer tem legalmente capacidade para gerir sua vida, torna-se ainda mais inconstitucional, vez que viola o direito a proteção integral previsto na Constituição e no Ecriad, que assegura a toda criança e adolescente o direito a vida, a saúde, a dignidade e a integridade física, emocional e mental.
Deste modo, o citado projeto de lei, trata-se na verdade, de uma cristalina misoginia legislativa inconstitucional, que busca furtar das mulheres e meninas seu direito pleno à vida, à saúde, à liberdade e à dignidade, que devem por agasalho constitucional serem protegidos.
Fora todo esse bloqueio constitucional, temos os tratados internacionais sobre os direitos das mulheres que o Brasil faz parte, como por exemplo, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ( Convenção Belém do Pará), que salienta que além de proteção dos direitos humanos em âmbito internacional, o direito que a mulher que se respeite sua vida, e sua integridade física, mental e moral, bem como o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação, e também a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que salienta que deverá ser combatido toda e qualquer a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo, e deixa claro sobre a preservação dos direitos reprodutivos da mulher e ainda o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que em seu item 6º assegura o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, pactuado pelo Brasil como meta ate 2030.
Por fim, necessário acrescentar que caso esse projeto de lei avance e seja aprovado, o que teremos é uma evidente aberração jurídica, que premiará o estuprador e duplamente penalizará a vítima, vez que a pena para o crime de estupro presente no artigo 213 do Código Penal é de 06 a 10 anos de reclusão, enquanto a nova pena para o aborto decorrente de estupro poderá chegar até 20 anos de reclusão com esse novo projeto.
O que estamos assistindo é um retrocesso que chancela o quanto temos um legislativo misógino que tenta a todo custo inferiorizar e punir as mulheres, e principalmente mulheres negras.
Além de tal medida legislativa ser visivelmente desproporcional, o que teremos será mais um instrumento para penalizar e encarcerar mulheres pobres, em sua maioria negras que são aquelas que não detêm acesso a recursos financeiros.
É mais prudente que o poder publico tente uma maneira realmente eficaz de evitar abortos que não seja a criminalização, como educação sexual, planejamento familiar, amparo as mulheres gestantes e acessos a contraceptivos,
Precisamos de um legislativo que seja conservador no sentido de conservar a infância e a proteção de nossas crianças, e não que colaborem para que ciclos violentos se perpetuem.
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