Meritocracia e População Negra: Não é sobre onde começamos, mas sobre como somos tratados quando chegamos lá

0
Meritocracia e População Negra: Não é sobre onde começamos, mas sobre como somos tratados quando chegamos lá
Foto: Reprodução

Texto: Liliane Rocha

Costuma-se questionar o mérito e a ideia de meritocracia a partir do argumento dos pontos de partida. Afinal, como acreditar que existe mérito em uma corrida em que largamos de posições tão distintas? Enquanto uns nascem cercados pelas melhores condições de educação, saúde e moradia, outros enfrentam, desde o início, a precariedade e a exclusão. Como acreditar em meritocracia se negros e brancos, homens e mulheres, partem de pontos tão distintos e enfrentam desafios tão diferentes ao longo da jornada?

Notícias Relacionadas


No entanto, ao longo da minha trajetória, compreendi que o problema não está exclusivamente na largada — está, sobretudo, no ponto de chegada. É quando alcançamos o topo, quando finalmente rompemos as barreiras e conquistamos reconhecimento, que a falácia da meritocracia se revela de forma ainda mais brutal para pessoas negras, mulheres, LGBTQPIAN+, pessoas com deficiência e outros grupos historicamente marginalizados. Afinal, mesmo depois de vencer todos os desafios, seguimos sendo tratados de forma extremamente desigual pelos motivos mais fugazes — pela cor da pele, pelo gênero, pela orientação sexual.

Sim, quando chegamos ao primeiro lugar, quando alçamos o pódio! Quando finalmente hackeamos o sistema e, a despeito de tudo e todos, chegamos ao topo para o momento tão aguardado regozijo após a jornada do herói — é nesta hora que a ausência da meritocracia se torna ainda mais contundente para grupos historicamente minorizados. Pois neste momento, fica evidente que seguimos lidando com o racismo, o machismo, a LGBTfobia, a despeito dos nossos feitos, por mais grandiosos que sejam. Portanto, não é somente sobre onde começamos, mas sobre como somos tratados quando finalmente chegamos.

É lá, quando você já tem toda a formação, reconhecimentos, experiência e renda, que fica evidente o quanto continuará sendo tratado ou tratada de forma extremamente excludente, única e exclusivamente por causa de alguma característica sua, que segue e seguirá sem ser socialmente aceita.

Por isso, a meritocracia, por exemplo, não alcança e talvez jamais venha a alcançar pessoas negras em um país pautado no racismo estrutural como o Brasil. Como eu tenho dito por aí, eu também acreditei na meritocracia! Como uma mulher negra, de origem de baixa renda, que viveu a primeira infância na extrema pobreza, acreditei que quanto mais eu estudasse e trabalhasse, mais próxima eu estaria da igualdade plena, do respeito inalienável, da segurança. 

Hoje, com Mestrado e MBA na Fundação Getúlio Vargas, 20 anos de atuação como executiva em grandes empresas, dez deles a frente da minha própria consultoria, sei que a meritocracia não existe. Continuo, por exemplo, enfrentando tratativas desiguais em relação a colegas brancos quando envio propostas para as grandes empresas. A depender do estabelecimento, sendo seguida por seguranças. E sendo acusada indevidamente de não pagar a conta no estabelecimento mesmo com a nota fiscal em mãos.

Recentemente, tivemos um exemplo notório e contundente do que estou falando: a Feira Preta, idealizada e liderada por Adriana Barbosa. Embora a Adriana seja uma empreendedora social reconhecida nacionalmente e internacionalmente, e a Feira Preta tenha movimentado  em 2024 cerca de R$ 14 milhões entre empreendedores, artistas, veículos de comunicação e cadeia produtiva, beneficiando diretamente 170 empreendedores negros e gerando aproximadamente 600 empregos temporários, o evento não conseguiu o patrocínio necessário para ser realizado em 2025 na cidade de São Paulo. 

Quer mais resultados? A Feira Preta teve 350 inserções na imprensa, dez milhões de visualizações orgânicas nas redes sociais e uma inovação: um festival brasileiro integralmente reproduzido no metaverso, alcançando mais de cinco mil pessoas no mundo.  Como diz a Mari Lemos, líder de comunicação da Feira, o “impacto incontestável na comunicação, no aspecto econômico das contratações e na dimensão simbólica e material de um time sobretudo preto e pardo.”

Pois bem, se todos fôssemos realmente reconhecidos exclusivamente pelos nossos méritos, e não pela cor de nossas peles, pelos nossos sobrenomes ou pela família na qual nascemos, a Adriana Barbosa certamente teria sido exitosa na captação para a realização do projeto.

Alguns poderiam argumentar que estamos passando por uma crise econômica, outros, que os acontecimentos dos Estados Unidos têm influenciado o Brasil, mas pergunto: quais grandes eventos liderados por executivos e empreendedores brancos estão também sendo postergados por falta de patrocínio este ano?

Me parece que, no limite, quando o cenário de alguma forma fica mais controverso, os primeiros a serem jogados para fora são justamente aqueles e aquelas aos quais sempre houve algum tipo de relutância na inclusão. Neste sentido, mais uma vez podemos entender que o mérito é uma ilusão. E você, em quem você e a sua empresa vão investir neste ano?

Notícias Recentes

Participe de nosso grupo no Telegram

Receba notícias quentinhas do site pelo nosso Telegram, clique no
botão abaixo para acessar as novidades.

Comments

No posts to display