
Por Etiene Martins
Hoje, ninguém mais quer ser branco. Pelo menos, não publicamente. Em eventos que celebram a produção intelectual e artística negra, como o festival LEAD no Museu do Amanhã e o curso ministrado por Conceição Evaristo na Fundação Casa Rui Barbosa, o que eu tenho visto são mulheres brancas, ocupando cargos de poder, tentando reconfigurar sua identidade racial.
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No dia 14 de junho, fui ouvir Chimamanda Ngozi Adichie. Cheguei cedo, me achando linda vestindo Naya Violeta, uma estilista negra de Goiânia, e me sentei na primeira fileira pra ficar bem pertinho da minha romancista africana preferida. Vai que eu consigo tirar uma fotinho com ela? A expectativa era ouvir tudo que a grandiosa escritora nigeriana tinha a dizer. O painel foi mediado por duas mulheres negras incríveis: Ana Paula Xongani na apresentação e Aline Medlej fazendo as perguntas.
Mas antes do início do painel, a fala institucional de Bia Lima, supervisora de inclusão da Fundação Roberto Marinho, que se auto descreveu como “negra”, gerou espanto. Trata-se de uma mulher visivelmente branca de traços finos, pele clara, cabelos lisos, sendo tratada socialmente como branca. Ouvi aquilo e quase duvidei da minha sanidade. Confirmei com quem estava por perto: todos ouviram o mesmo. Fiz um story indignada e segui. Afinal, não seria a branquitude que me tiraria a alegria de ouvir Chimamanda.
O episódio ficou sem resposta. O perfil da Fundação Roberto Marinho visualizou, mas não se posicionou. Como já era o esperado.
Uma mês depois, outra escritora negra de renome: Conceição Evaristo. A primeira aula de seu curso, transmitida online, reuniu milhares de pessoas. A anfitriã, Andreia Terra, chefe de gabinete da Fundação Casa Rui Barbosa, iniciou a transmissão se descrevendo como: “eu sou uma mulher de pele marrom e de cabelo meio marrom também”. Pausei o vídeo, voltei, ouvi de novo. Era uma mulher branca tentando se apresentar como não-branca.
A reação foi imediata no chat: questionamentos, indignações, chamadas de atenção. No intervalo, Silvany Euclênio pediu generosidade ao público. Disse que Andreia havia feito uma autocrítica. De fato, ao retornar, ela afirmou: “No inicio da noite de hoje na minha auto descrição eu disse: eu sou uma mulher marrom, para me descrever. Eu falei essas palavras. Eu recebi críticas por isso e críticas que eu compreendo e acolho. Falando agora sobre a minha autodeclaração eu sou uma mulher parda, filha da minha mãe preta e do meu pai branco. A minha pele clara sempre gerou dúvidas e confusões em mim e em toda a minha família sobre como me identificar racialmente. As críticas que recebi me provocaram a reflexão com mais profundidade sobre minhas origens, o meu lugar e minhas responsabilidades ao me nomear. Espero que a minha confusão não seja incômodo. Agradeço as criticas, levarei as reflexão para a vida inteira. Por isso eu só posso sinceramente agradecer.”
Foi possível ouvir os aplausos da plateia ao não pedido de desculpas da Andreia Terra. Mas fiquei me perguntando cadê a criticidade desse povo? Bater palmas para uma mulher sem nenhum letramento racial que se sentiu à vontade de compartilhar o palco com uma escritora que ela nitidamente não está qualificada para tal. Quantas jovens negras que estão capacitadas para ali estarem e terem em seus currículos essa experiência com essa grandiosa intelectual teve a oportunidade negada para que a Andreia Terra ali estivesse? Muitas, eu garanto.
Mas há uma camada mais funda nessa história. Mulheres negras são sistematicamente excluídas dos espaços de decisão e protagonismo, mesmo com qualificação e formação impecáveis. O chamado “pacto narcísico da branquitude”, como bem definiu Cida Bento, mantém o racismo institucional como regra. E é isso que faz com quê não haja mulheres negras no alto escalão dessa instituições.
Todo mundo sabe, ou deveria saber, que raça é um marcador social, não genético. Ser negro no Brasil não tem a ver com linhagem, mas com aparência, com o modo como o corpo é lido socialmente. Como bem disse a Conceição Evaristo na aula que a nossa carteira de identidade é o nosso corpo. No nosso caso um corpo que é lido por sua negrura. Ninguém apanha ou é assassinado pela polícia por ter um avô preto. Apanha e é morto por ser visto como preto pelo racista. É essa leitura social que define a experiência racial, e é exatamente essa experiência que essas mulheres brancas definitivamente não têm.
O que está acontecendo é um fenômeno preocupante: mulheres brancas que usufruem dos privilégios da branquitude tentam negar sua posição de poder e se redesenhar racialmente quando se encontram em espaços em que o protagonismo são de mulheres negras. É como se ser branco tivesse se tornado desconfortável mas sem, claro, abrir mão dos privilégios que essa corporeidade lhes confere em todos os outros contextos.
Ser negro não é uma fantasia que você veste e tira quando lhe convém, nem um ato voluntário. É um lugar social marcado pela exclusão, pela violência, pela resistência. Mas sejamos honestas: será que essas mulheres que hoje se dizem “negras” ou “marrons”, vivendo no Rio de Janeiro, assumiriam com a mesma firmeza uma identidade negra se isso significasse que seus filhos seriam lido como e poderiam ser alvejados com 111 tiros, como aconteceu com tantos outros jovens negros? Será que o desejo de se “tornar” negra resistiria ao medo real de ser tratado como tal? Hoje mais cedo uma seguidora me fez uma pergunta que continua pulsando, mais viva do que nunca e compartilho com você: Quando, afinal, deixarão de ser racistas?
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