
Para falar de comida e ancestralidade para um público de afroempreendedores, não poderia deixar de voltar alguns anos na história do Brasil, onde as raízes desse nicho específico de empreendedorismo residem. Anos? Não, séculos. Precisamos falar das “escravas de ganho”, as “ganhadeiras” ou “negras de tabuleiro” dos séculos XVIII e XIX. Mulheres escravizadas, algumas libertas, que saíam às ruas do Rio de Janeiro, Salvador, São Luís do Maranhão e outras cidades com seus cestos, balaios e tabuleiros vendendo toda sorte de quitutes. Para as que ainda não tinham sido alforriadas, parte do ganho de suas vendas era destinado aos seus senhores, que podiam viver do ócio graças à desenvoltura de suas serviçais. Já as libertas eram donas de seus ganhos e, com isso, garantiam o sustento de suas famílias, a compra de alforrias e de bens como joias e, futuramente, imóveis.
É praticamente impossível citar todos os seus nomes, mas uma delas é notável: Tia Ciata, Hilária Batista de Almeida. Uma mulher baiana que, perseguida por policiais, teve que se mudar para o Rio de Janeiro, onde, com seus quitutes, exerceu forte influência na sociedade negra, comprou um imóvel que era ponto de encontro do movimento político, porto seguro para encontros musicais e onde foi gravado o primeiro samba brasileiro. Você imaginava que vender manjares, cocadas, bolos e acarajés nas ruas, no período colonial, poderia gerar tamanha revolução num sistema escravista?
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Essas histórias estão registradas em alguns livros e também podemos conhecer parte dessas mulheres no acervo permanente do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, localizado em São Paulo. Essa visita é obrigatória e fundamental para todos nós. Se hoje milhares de mulheres empreendem na área da alimentação, é porque somos herança direta dessa fonte. Trago esse fato histórico para que a gente não se esqueça e para que sintamos orgulho do que nos constitui e nos faz empresárias, confeiteiras, cozinheiras, chefs de cozinha, assistentes, merendeiras, padeiras, quituteiras…
Outra informação que não pode ser deixada de lado é a existência brilhante de Benê Ricardo, que, nos anos 1980, foi a primeira mulher (você leu bem: mulher, e não mulher negra) a se formar numa graduação em gastronomia e a primeira a chefiar uma cozinha profissional de hotel cinco estrelas. Ela foi pioneira de verdade e deixou para nós um legado sem precedentes!
Lá nos Estados Unidos, também temos dois exemplos importantes: Lena Richard, autora de livros de cozinha e chef que apresentou um programa de televisão em Nova Orleans nos idos de 1940. Sabe a famosa cozinheira Julia Child? Ela estreou seu programa vinte anos depois de Lena Richard. E o primeiro chef de cozinha norte-americano foi James Hemings, um negro nascido escravo em 1765 e que foi chef do terceiro presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson.
Dito isso, a ancestralidade é uma riqueza e nós precisamos beber nessa fonte. Mas, para mim, ela não é algo que ficou preso lá no passado; é algo que nos permeia, que corre muito viva em nossas veias a todo momento. A nossa ancestralidade pulsa, como querendo dizer: estou aqui com você. Olha para mim, me reconhece, lembra de mim, deixa eu ir junto com você nesse caminho do empreendedorismo gastronômico.
Sabemos que os caminhos nem sempre são fáceis, muitas vezes são tortuosos. Mas a capacitação é ferramenta fundamental para que as pedras do caminho sejam retiradas uma a uma, para que a tal da luz surja no tal do fim do túnel e que nosso jeito único de empreender seja finalmente encontrado. Tem quem faz assim, tem quem faz assado e tem quem não faz. Então, se você segue trabalhando, acreditando nos seus sonhos, estudando, aprendendo novas tecnologias, aprimorando o seu negócio, você está de parabéns e tem o nosso apoio.
A comida brasileira é afroindígena e muito do que comemos hoje é herança direta dos nossos antepassados. Para te inspirar, te conto que alimentos como o quiabo, o feijão fradinho, a melancia, o café, o inhame, o dendê, a pimenta malagueta e outros são de origem africana e vieram para estas terras durante as rotas transatlânticas. A fermentação de grãos e frutas é uma descoberta egípcia e, se o mundo todo come pão, bebe cerveja e vinho, é graças aos nossos antepassados mais distantes.
Eu sou pesquisadora de culturas alimentares e encontrei um jeito todo meu de fazer da casa e dos hábitos das mesas brasileiras o meu delicioso objeto de estudo. Uso a comida como desculpa para falar de tantos outros assuntos. Porque comer é um ato biológico, mas a comida é muito mais. Ela é ferramenta de comunicação, ato político e instrumento de transformação social. Eu vejo essa transformação acontecendo a todo momento. E te convido a enxergar a revolução que a comida também fez, faz e fará na sua vida. Então, recupera o caderno de receitas da sua família, tira o pilão do fundo do armário, respira bem fundo, enche o seu peito de ar e de autoestima e mãos à obra. Tem muita gente lá fora querendo comprar a sua comida e os seus serviços, vende bem o seu peixe! Ou a sua moqueca, bolo ou geleia. Estamos aqui para te aplaudir.
Texto: Patty Durães [@patty.duraes]. Pesquisadora de culturas alimentares, especializada na influência das heranças afrodiaspóricas na culinária brasileira. Com experiência em instituições como SESC, MASP e SENAC e Sebrae, ela é autora do curso “Muito Além da Boca” na plataforma EAD da Fundação Itaú, foi curadora da primeira edição do Menu Cultural em 2024. TEDX speaker e professora convidada na Dillard University, em New Orleans, também em 2024. Patty pesquisa projetos editoriais para a Cia das Letras e assina a pesquisa de personagens da série Coisas Daqui, para a Globo Minas e GNT. É professora de Festas Tradicionais Populares, Hospitalidade e Turismo gastronômico na pós-graduação em comida brasileira da faculdade de gastronomia do SENAC Santo Amaro e no Instagram, compartilha suas experiências e pesquisas.
Esse conteúdo é fruto de uma parceria entre Mundo Negro e Feira Preta.
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