Mundo Negro

Entre becos e tribunais: o que a liberdade de Poze revela

Foto: Agnews

Texto: Luciano Ramos

A comoção popular em torno da prisão e posterior soltura de Poze do Rodo não é apenas sobre um artista, sua figura pública ou sua inocência ou culpa. É, sobretudo, sobre o Brasil que se levanta quando a favela é atacada, e sobre o outro Brasil — aquele das elites, das instituições, do olhar viciado — que insiste em não ver, não ouvir e não aprender com aquilo que a periferia tem sido capaz de produzir: cultura, resistência, identidade e potência.

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A prisão de Poze ativou algo que não pode ser ignorado: a mobilização de uma comunidade que se reconhece nele. Um Brasil negro, jovem, pobre e periférico que se vê diariamente atravessado por abordagens policiais, decisões judiciais e manchetes que criminalizam seus corpos antes mesmo que qualquer julgamento aconteça. Não é novidade para quem vive a realidade da favela que a justiça tarda — e quando chega, muitas vezes pesa de forma desigual.

Mas o que Poze representa vai além do indivíduo. Sua trajetória é símbolo de uma geração que encontrou nas redes, na música, no funk, na rua, caminhos de afirmação e sobrevivência. A sua liberdade, celebrada com fervor nos becos e vielas, mostra que a favela tem voz, tem força, tem articulação. Mostra que ela se reconhece como sujeito coletivo, capaz de disputar narrativas e de exigir respeito.

O que está em jogo, portanto, não é simplesmente a figura do artista, mas a cegueira persistente de um Brasil que há mais de 500 anos construiu muros — e não pontes — entre si. Um país que não se pergunta o suficiente sobre o que a sua desigualdade histórica gerou em termos de cultura, criatividade e resiliência.

A favela brasileira é, ao mesmo tempo, ferida e resposta. Lugar de violência e de sonho, de ausência do Estado e de abundância de solidariedade. É ali que nasce o novo Brasil, o Brasil que canta, dança, debate, cria soluções. Mas esse Brasil continua sendo visto apenas pela lente da criminalização, da excepcionalidade, do susto que a mídia sente quando milhares vão às ruas por um funkeiro.

Talvez o incômodo de alguns diante da mobilização pela liberdade de Poze seja, no fundo, medo do poder que a favela tem quando se reconhece e se organiza. Porque essa potência revela a falência de uma nação que insiste em não integrar, não investir, não dialogar.

É hora de perguntar: o que esse Brasil periférico tem a ensinar ao país que o ignora? O que ele mostra sobre os fracassos das políticas públicas, sobre a seletividade da justiça, sobre a urgência de uma escuta real e de um reconhecimento concreto?

Poze do Rodo, com todos os seus acertos e contradições, é também espelho. E o reflexo que ele devolve é o de um país que ainda não se decidiu se quer conviver com a favela ou continuar tentando apagá-la. Mas uma coisa é certa: a favela não será mais espectadora. Ela é autora. Ela é voz. Ela é Brasil.

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