Uma nova geração de diretoras e roteiristas pretas vêm impulsionando as narrativas negras na produção audiovisual brasileira. São criadoras que têm ultrapassado barreiras e criam histórias que vão além do enfoque sobre violências cotidianas e racismo.
No dia 26 de julho, Dia da Mulher Negra Latino-Americana Caribenha, chega à Netflix o longa “Um Dia Com Jerusa”, dirigido pela soteropolitana Viviane Ferreira e protagonizado por Léa Garcia. Ferreira é fundadora da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) e um dos símbolos dessa ocupação de espaço por idealizadoras pretas no cinema nacional.
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Para ajudar a dar mais velocidade e suporte à caminhada de criadoras pretas, a Netflix criou o projeto Colaboratório Criativo. A iniciativa é uma colaboração entre Afar e WIP que faz o recrutamento com a ajuda de associações focadas em mapeamento de profissionais negros do audiovisual como a Apan.
um programa de formação prático que tem como objetivo equipar roteiristas e cineastas emergentes afro-brasileiros com ferramentas para que desenvolvam uma série que possam apresentar à Netflix Brasil. A diretora e roteirista de curtas como “Verás” e “Em Jogo”, Thays Berbe, foi contemplada a participar do projeto. “A importância do Colaboratório é organizar essa transformação de mercado, de ruptura. É também procurar espaço para que autores negros e negras possam ter espaço de buscar seu trabalho (…) e é importante que a gente tem oportunidade de se conhecer, entender o mercado quanto estrutura,a lógica de mercado, outros profissionais”, diz Berbe que a princípio não sabia que a Netflix estava por trás do projeto. “Eu recebi um e-mail que era tão bom que parecia mentira dizendo que eu tinha sido selecionada para participar de um processo seletivo e que eu ganharia uma bolsa para estudar e eu falei ‘nossa, maravilhoso’. Não sabia que era a Netflix que estava patrocinando esse processo, que estavam em busca de um projeto”, diz.
Quem também está envolvida diretamente com projetos dentro da Netflix Brasil é a roteirista Belise Mofeoli, uma das roteiristas da comédia romântica “Casamento à Distância, que está em fase de pré-produção. Casamento à Distância, o longa da Netflix do qual sou também roteirista (ao lado do Renato Fagundes), que eu me lembre, é a primeira comédia romântica brasileira protagonizada por um casal afrocentrado. E é repleto de diversidades. E por que isso é importante? Por que estou cansada de ver negros subalternizados, morrendo e marginalizados nas produções audiovisuais. Tudo bem fazer narrativas que também englobam isso se for para aprofundar e ampliar olhares, mas não como fetiche ou vício narrativo”, diz a roteirista.
Quem acompanha a fala de Belise sobre a produção é a Gerente de aquisição de conteúdo na Netflix, Aline Lourena (34).O filme fala de sentimentos universais e inerentes a todo ser humano, como a afetividade e suas diversas formas de vivenciá-la. E coloca um casal negro no centro de uma história de amor, como tantas outras que há por aí. Precisamos naturalizar a presença das pessoas negras em qualquer formato, gênero, personagem ou tema de história”, declara.
Com a presença de criadoras potentes no audiovisual se ampliando, se abre um portal de novas referências que se juntam a nomes consagrados e lembrados por Belise. “O apagamento histórico da nossa gente é tão sintomático que sempre que descobrimos que uma nova pessoa preta criou antes de nós, rola uma emoção. Outra coisa curiosa é que nossas referências para construção de narrativas vêm tanto de outras artes quanto do audiovisual, e isso porque como ainda são poucas as pessoas negras com boas oportunidades no mercado audiovisual, seguimos com outras criações artísticas. Em homenagem à data que motiva essa entrevista, cá estão nomes de mulheres pretas que me fazem querer continuar seguindo no audiovisual. São cineastas, pesquisadoras de cinema negro, atrizes, roteiristas… enfim, um quilombo maravilhoso! Adélia Sampaio, Aline Lourena, Ava DuVernay, Chica Xavier, Dione Carlos, Hattie McDaniel, Janaína Oliveira, Kênia Freitas, Luh Maza, Lupita Nyong’o, Maria Angela Jesus, Maria Shu, Melina Matsoukas, Michaela Coel, Octavia Spencer, Ruth de Souza, Sabrina Fidalgo, Safi Faye, Sarah Maldoror, Shonda Rhimes, Taís Araújo, Viola Davis, Viviane Ferreira, Zezé Motta… sério, eu sou capaz de citar nomes o dia inteiro”, aponta.
Como uma geração inteira de brasileiros, Berbe se viu representada em séries norte-americanas como ‘Um Maluco No Pedaço’, ‘Eu, a Patroa e As Crianças’ e ‘Todo Mundo Odeia o Chris’. “Eu via as séries de comédia gringas e me perguntava porque a gente não fazia uma série de comédia brasileira preta e essa minha vontade de fazer humor, fazer comédia, talvez tenha nascido assistindo esses produtos protagonizados por pessoas pretas”, declara a diretora, que cita também nomes da atualidade como Michaela Coel (‘I May Destroy You’) e Issa Rae (‘Insecure’) e Shonda Rhimes (‘Bridgertons’).
“Me sinto muito honrada e ao mesmo tempo chateada. Ao mesmo tempo podia não ser uma responsabilidade coletiva. Porque é isso. Se o mercado fosse mais diverso, tivesse mais profissionais pretas, tivesse uma rede mais forte nesse espaço, eu acho que eu teria mais apoio, as coisas poderiam ter acontecido antes, de outra forma. O público já estivesse mais habituado a consumir produtos desse gênero, o caminho estaria mais sedimentado, talvez fosse mais tranquilo”, diz Berbe quando questionada como se sente ao pensar que pode se tornar uma referência para futuras roteiristas negras.
Sobre a mesma questão, Belise enumera uma série de apontamentos. Abrir caminhos é sinal de evolução, o contrário seria estagnar. Só se dá ao luxo de parar quem chegou a um lugar confortável. E me pergunto como alguém pode sentir-se confortável num mundo caótico, com questões seríssimas a serem discutidas. Quero mais é aquilombar! (…) 1. O orgulho por haver quebrado uma barreira; 2. A torcida para que outros tenham as mesmas oportunidades; 3. Um questionamento inevitável sobre qual motivo fez com que demorasse tanto para que algo assim se desse; 4. A certeza de que vai ter gente tentando inverter o jogo ao pegar o nosso caminho árduo para tecer discursos meritocráticos ou dizer que foi “sorte”. Não foi. Para cada mulher preta que tem visibilidade hoje, deveria ser perguntado também do que abriu mão para chegar lá. Referência é pra dar norte, não para ser o caminho, é pra inspirar. É tipo “Preta(o), respire fundo e só vai!”. Quero sucesso pra mim e pra um bando de gente preta, quero um mundo onde saibam que merecemos ser bem pagas porque, infelizmente, precisamos provar muitas e muitas vezes a qualidade no trabalho. Por anos me trataram como se eu estivesse começando. Em alguns lugares, ainda tentam”, conta.
O Site Mundo Negro pediu para que Belise e Berbe deixassem uma mensagem para mulheres pretas que aspiram seguir carreira na produção audiovisual:
Belise: “Nossos antepassados, forçadamente, trabalharam de graça e vocês não precisarem fazer isso. Valorizem-se! Ninguém está te fazendo favor ao te chamar pra uma sala de roteiro. As suas experiências de vida e cultural imprimem originalidade nas narrativas, então, façam-se ouvir. É delicioso encontrar num produto audiovisual uma frase que você facilmente diria ou ouviria de alguém querido, não é? Identificação com o que se assiste é reconfortante, não acham? Faça isso também! Assim que puderem, ajudem outras pessoas negras e indígenas a integrarem suas equipes. Muitas de nós estão se preparando para a grande chance. Inspirem-se em pretas e inspirem pretas. E, principalmente, NUNCA esqueçam de onde vieram. Afrofuturisticamente falando, é o único jeito de nosso futuro honrar todo o passado do nosso povo.”
Berbe: Acho importante elas se aproximarem das associações, de coletivos pretos, de festivais de cinema com essa temática, começarem a racializar as obras brancas. Enxergarem esses espaços pretos como um apoio por reflexo da sociedade. Acho muito ingênuo quem está começando agora não compreender ou ignorar que essas questões te atravessam querendo ou não. É muito bom fazer essa leitura do mercado e das produções a partir dessa atenção e formar sua turma. Cinema é fazer parceria, ver quem você conhece que gosta de fazer som (…) e não necessariamente falar só sobre racismo, falar sobre o que quer contar, mas saber que esses movimentos vão ajudar muito. E estudar muito. Estudar, estudar, assistir bastante coisa, ler bastante coisa, ter uma consciência racial sobre o mercado, ter um olhar político, sempre pensar que haverá outros projetos na frente, que você vai errar, vai acertar e contar sua visão de mundo”.Léa
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