Quando me descobri grávida, no início de 2019, eu já tinha plena consciência de como seria a educação da minha criança. Venho de um lar com educação afrocentrada e não saberia fazer diferente. Meu pai partiu sem saber o tamanho do legado que ele deixou. E desde que minha filha nasceu eu tenho descoberto cada vez mais dessa “herança”. Ao longo desses quase 5 anos de maternidade, a educação da Ella é um desafio quase sempre muito prazeroso. São esforços para que ela se reconheça nos mais diversos espaços e acredito que meu papel como mãe negra seja apenas esse, o restante da luta não pode ser assumida por nós, negros e negras, cabe aos responsáveis reconhecer suas mazelas. Montamos uma afroteca, como carinhosamente chamamos a biblioteca, criamos o quilombinho, a comunidade de bonecas e bonecos negros, trouxe referências dos mais diversos profissionais e potências negras, ainda assim, aos 3 anos e 4 meses minha filha verbalizou: mamãe eu queria ser branquinha. Meu mundo caiu. Eu sabia que passaria por isso, mas não tão cedo e, no fundo, nenhuma mãe está preparada.
Eu dormia e acordava pensando no que ela sentiu até verbalizar isso, onde eu tinha falhado, o que mais poderia fazer dar suporte à minha filha… Foram questionamentos e culpas intermináveis. Morávamos em São Paulo, num bairro em que ninguém se parecia conosco, nas atividades esportivas da academia éramos sempre os únicos negros, se tivesse mais um, sem considerar os prestadores de serviços (pelos quais eu tenho muito respeito, admiração e semelhanças físicas e sociais), era muito. A escola que ela frequentava desde 1 ano e 3 meses de idade, era e é impecável, inclusive, já ministrei uma formação antirracista para os educadores, ainda assim poucas crianças se pareciam com ela. Até que eu tive a ideia de matriculá-la durante as férias de julho de 2023, na Decolônia de Férias da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, em Salvador, a primeira escola de educação afrocentrada, reconhecida pelo MEC, o sonho e o compromisso das intelectuais Bárbara Carine e Maju Passos. Foi um mês de imersão nas nossas raízes da forma mais lúdica, respeitosa e afetiva. A Ella voltou para São Paulo pretinha, por dentro e por fora. E eu voltei esperançosa, mas inquieta.
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Durante todo o mês de novembro do mesmo ano, eu fiquei em Salvador em função das atividades do mês da Consciência Negra e mais uma vez a Ella me acompanhou e foi para a Escola Maria Felipa. No final de dezembro nos mudamos para Bahia. Eu sentia que não podia privar minha filha de se ver, se reconhecer e se desenvolver a partir do que ela é.
Tive o privilégio, e também a coragem, de fazer isso, mas está longe da solução ideal. A luta por uma educação antirracista é uma batalha fundamental na construção de uma sociedade mais justa e equitativa. No entanto, essa jornada enfrenta inúmeras dificuldades, especialmente para nós mães negras e/ou mães de crianças negras.
Recentemente dois casos chamaram atenção para essa pauta: o Colégio Visconde Porto Seguro, tradicional instituição de ensino frequentada pela nata da sociedade paulistana, foi denunciada pelas ONG’s Educafro e Anced por oferecer um “atendimento” separatista aos alunos cotistas da escola, maioria negra, com direito a pior infraestrutura e grade curricular diferenciada, além das regras de circulação restrita. Um apartheid moderno. Como a famosa imagem do bebedouro que ilustra bem a segregação racial na longíqua década de 1930 (ou nem tão longe assim), em Oklahoma (EUA).
A outra situação nos mostra que raça vem antes de tudo, inclusive de classe socioeconômica. A filha mais velha da atriz Samara Felippo, foi alvo de racismo dentro de outra tradicional escola paulistana, desta vez o Colégio Vera Cruz, na zona oeste de São Paulo, inclusive, ele fica na mesma rua onde morávamos. A jovem teve seu material roubado e destruído por alunas brancas, onde ainda proferiram por escrito ofensas racistas. As alunas admitiram o crime e até agora nenhuma decisão judicial ou institucional foi tomada. Ou seja, não se tratava de uma aluna bolsista, ela é uma menina com poder aquisitivo estabelecido, filha de uma pessoa conhecida e ainda assim o racismo falou mais alto. Com isso, iniciou-se uma discussão e a escola não soube como agir. Expulsa as agressoras e contraria toda associação de pais e alunos? Já leram o Pacto da Branquitude, da Cida Bento? Povo unido. Ou mantém as meliantes e se opõe a 56% da população brasileira que não faz parte do seu público alvo? A instituição nem precisou decidir, os pais das alunas agressoras optarem tirá-las do colégio voluntariamente. Eu não tenho resposta e nem opinião para essa questão. Mas mensurar os impactos negativos e assumir parte da responsabilidade do racismo nosso de cada dia, seria um bom começo para os dois colégios.
Enfrentamos barreiras sistêmicas que impactam diretamente o acesso e a qualidade da educação de nossos filhos. Essas barreiras podem incluir desigualdades sociais e econômicas que frequentemente colocam mães negras em situações desfavoráveis, o que pode restringir o acesso de seus filhos a uma educação de qualidade. Além disso, as instituições educacionais muitas vezes não estão preparadas para lidar com as necessidades específicas das famílias negras, resultando em formas de discriminação velada, como estereótipos raciais ou falta de sensibilidade cultural. A falta de representatividade racial no corpo docente e no currículo escolar também pode afetar negativamente a autoestima e o desempenho acadêmico das crianças negras. Além do viés racial que pode levar à imposição de práticas disciplinares mais severas às crianças negras, bem como à falta de incentivo para sua participação em programas avançados, devido a preconceitos tanto implícitos quanto explícitos por parte dos educadores.
Como eu sempre menciono, a intencionalidade é fator determinante para mudanças efetivas e as instituições de ensino podem usar sem moderação. Proporcionar treinamento regular sobre diversidade, equidade e inclusão para todos os funcionários da escola como política da cultura interna é o primeiro passo. Isso ajuda a identificar e abordar preconceitos implícitos e explícitos. Outras mudanças também são bem vindas e assertivas, como incorporar uma variedade de perspectivas culturais e históricas no currículo escolar, garantindo que todas as crianças se sintam representadas e valorizadas. Todas. O recrutamento diversificado de educadores negros e de outras minorias étnicas também é importante para criar um corpo docente mais diversificado e representativo. Estabelecer parcerias com organizações comunitárias e líderes locais é outra maneira eficaz de promover uma cultura escolar inclusiva e sensível às necessidades das famílias negras.
Investir em uma educação antirracista não apenas beneficia as crianças negras e suas famílias, mas também contribui para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa para todos. Uma educação antirracista capacita as crianças negras a se orgulharem de sua identidade racial e a buscarem seus objetivos com confiança e determinação. Ao valorizar e celebrar a diversidade cultural, as instituições de ensino criam um ambiente mais rico e estimulante para todos os alunos, promovendo a compreensão e o respeito mútuo. Ao combater o racismo institucional desde tenra idade, as escolas desempenham um papel fundamental na promoção da justiça social e na construção de um futuro mais inclusivo e igualitário.
Para saber mais sobre educação antirracista, deixo os links das instituições que têm trabalhado o racismo com responsabilidade e intencionalidade.
Escola Afro-Brasileira Maria Felipa – Salvador/BA
Villa Criar – Lauro de Freitas/BA
Camino School – São Paulo/SP
Emei Nelson Mandela – São Paulo/SP
No mais, “tudo certo na Bahia”. A Ella já tem sotaque, me chama de “minha mãe”, pede cuscuz no café da manhã e frequenta salão de beleza para cuidar do black power com alegria e autoestima elevadíssimas. Vim, vi e venci.
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