Do prato ao plano: Afroempreendedorismo gastronômico entre identidade e gestão

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Do prato ao plano: Afroempreendedorismo gastronômico entre identidade e gestão
Lourence Alves (Foto: Divulgação)

Por: Lourence Alves

O empreendedorismo, olhado em uma afro perspectiva, e compreendido para além da lógica puramente mercadológica, revela-se como uma prática de afirmação identitária e continuidade histórica. Em contextos como o da formação Feira Preta Cria, essa perspectiva emerge de forma viva, colocando em evidência como negócios liderados por pessoas negras não são apenas unidades produtivas, mas também espaços de criação, preservação e reinvenção de saberes ancestrais.

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Ao dialogar com a cozinha afro-brasileira, carrega em si o compromisso de navegar entre memórias e inovações, de maneira similar ao que ocorre no preparo de um prato que, ao mesmo tempo, resgata tradições e incorpora novas possibilidades.

Assim, cada empreendimento se torna também um ato político, que reverte o ciclo histórico de marginalização e se ancora em valores coletivos, culturais e comunitários.

As tecnologias negras, nesse contexto, não se limitam ao campo das inovações contemporâneas, mas englobam sistemas de conhecimento e prática desenvolvidos e refinados ao longo de séculos. Trata-se de um repertório que envolve desde métodos de cultivo e manejo agroecológico, até técnicas culinárias de aproveitamento integral e preservação dos alimentos, articulando sustentabilidade e sabor.

Esse caminho de empreender, lança mão de tecnologias que se atualizam em soluções criativas e unem tradição e inovação, permitindo que o negócio se torne um veículo de transmissão de saberes. Ao reconhecer que cada panela, cada receita e cada utensílio carregam marcas dessa engenharia social e cultural, compreende-se que o empreendedor negro opera, muitas vezes, como um guardião e propagador dessas tecnologias.

As estratégias negro-femininas são um eixo estruturante dessa trama, pois é majoritariamente através das mulheres negras que esses saberes e negócios se mantêm vivos. Nas feiras, mercados e cozinhas, elas tecem redes de apoio, constroem alianças e praticam a arte do mercar como uma forma de resistência econômica e cultural.

Essas estratégias combinam cuidado, perspicácia e visão de futuro, reinventando-se constantemente para driblar as desigualdades estruturais. Ao trazer para o afroempreendedorismo essa força organizadora e criativa, o trabalho das mulheres negras reafirma que não há dissociação entre gerar renda e manter vínculos comunitários, entre gerir um negócio e alimentar um território — no sentido literal e simbólico.

Gerir um negócio gastronômico dentro da lógica do afroempreendedorismo exige compreender que a dimensão cultural não exclui a necessidade de um planejamento sólido.

Uma das ferramentas mais eficazes para estruturar essa visão é o Business Model Canvas, que permite visualizar, de forma integrada, todos os elementos-chave do empreendimento: proposta de valor, segmentos de clientes, canais de distribuição, fontes de receita, recursos e parcerias essenciais, estrutura de custos e atividades principais.

Ao elaborar o Canvas, o empreendedor ou empreendedora negra consegue alinhar a identidade e os valores do negócio com estratégias objetivas de atuação, evitando decisões fragmentadas e facilitando o acesso a parceiros e investidores.

No campo da gestão financeira, a sustentabilidade do negócio depende de um controle rigoroso de receitas e despesas, de preferência utilizando ferramentas simples e acessíveis. Planilhas eletrônicas, aplicativos de fluxo de caixa e sistemas de controle de vendas podem ser aliados poderosos, muitos deles disponíveis gratuitamente.

Esse cuidado financeiro também se conecta ao princípio da autonomia: saber exatamente o custo de cada prato e a margem de lucro praticada é fundamental para não comprometer a viabilidade do empreendimento. É nessa prática que a economia afetiva encontra a economia de mercado, garantindo que o valor simbólico do trabalho seja acompanhado de um retorno financeiro justo.

A tão temida ficha técnica é outro instrumento essencial na gestão de um negócio de alimentação, pois permite padronizar receitas, controlar porções e calcular com precisão o custo de cada preparo. Além de garantir consistência e qualidade para o cliente, a ficha técnica possibilita um acompanhamento realista do impacto de variações de preço dos insumos e orienta tomadas de decisão sobre ajustes de cardápio.

Um caminho de desmistificação dessa ferramenta pode ser o de pensar nela, também, como documento de preservação cultural, registrando não apenas medidas e processos, mas também histórias, origens e significados de cada prato.

Navegar pela cozinha afro-brasileira é uma viagem que transcende o paladar e nos leva a um território de memórias, ancestralidade e resistência. Aproveitar essa travessia nos desafia a perceber como o preparo dos alimentos não é apenas uma expressão de técnicas, mas também uma forma de celebrar vidas, histórias e culturas que foram construídas a partir de cruzamentos complexos entre territórios e pessoas.

Lourence Alves (Foto: Divulgação)

O manejo estratégico das mídias sociais é hoje um pilar indispensável para qualquer negócio gastronômico, e no afroempreendedorismo ele assume ainda a função de ampliar vozes e narrativas historicamente silenciadas. Plataformas e mídias digitais oferecem recursos gratuitos para divulgação, interação e vendas, permitindo que micro e pequenos empreendedores alcancem públicos para além de seus territórios imediatos.

O conteúdo precisa ir além da promoção de produtos, contando histórias, mostrando bastidores, compartilhando saberes e evidenciando o diferencial cultural e afetivo que sustenta o negócio.

Um caminho de encantamento é o de olhar para as cozinhas brasileiras a partir dos ingredientes. É uma trilha que nos ajuda a descolonizar as referências gastronômicas hegemônicas, desfazendo mitos como o da feijoada sendo apenas um prato de restos.

Para isso, reconhecer as técnicas usadas, como o uso integral dos alimentos, que manifestam uma relação de respeito e saber profundo com a natureza, evidenciado no preparo cuidadoso dos feijões e suas variações, é fundamental.

Refletir sobre nossa alimentação e suas origens abre espaço para um entendimento mais profundo do que significa cozinhar em solo brasileiro com uma perspectiva afro-diaspórica. Ressignificar o quiabo, por exemplo, envolve valorizar seu espessamento natural, caracterizando-o como um ícone de inovação e não uma característica indesejável (baba), desvendando assim um mundo de sabores que foram amordaçados pela narrativa dominante.

Ao explorarmos a complexidade da cozinha afro-brasileira, é igualmente essencial reconhecer o papel das mulheres negras que, ao longo dos séculos, foram as protagonistas silenciosas que mantiveram vivas essas tradições. Seja nos tabuleiros ou nas feiras, suas habilidades mercantis e a arte do mercar são formas de resistência econômica e social.

A sabedoria que emanava dos quintais, aquela habilidade de cultivar e utilizar as plantas alimentícias, nos ensina que, muito antes de modismos e convenções, já existiam práticas voltadas para a sustentabilidade e o respeito ao ciclo natural das plantas. Esse é um legado de adaptação e sobrevivência que deve ser celebrado e protegido.

Portanto, o convite que esse conhecimento nos traz é ir além do prato. É um chamado para reviver memórias e reimaginar futuros através de uma conexão profunda com quem somos e de onde viemos.

Assim, fazemos da cozinha um espaço não apenas de nutrição, mas de identidade, lembrança e criação de novas narrativas que ressoam e respeitam nossas histórias coletivas e individuais. Essa jornada é, e sempre foi, sobre liberdade e identidade, consolidadas em cada refeição que partilhamos.

Ao integrar essas ferramentas — Canvas, gestão financeira, ficha técnica e mídias sociais — empreender é também construir uma base sólida que sustenta tanto a perenidade econômica quanto a coerência identitária do negócio.

Essa articulação entre técnica e cultura é o que permite que a cozinha afro-brasileira, com sua profundidade histórica e riqueza de significados, se estabeleça como força no mercado sem abrir mão de seus valores.

O resultado é um empreendimento que não apenas gera renda, mas também produz pertencimento, circulação de saberes e fortalecimento comunitário, alinhando gestão eficiente com a missão de transformar a realidade a partir da comida.

Portanto, pensar o afroempreendedorismo a partir da cozinha afro-brasileira e das experiências formativas como a Feira Preta Cria é reconhecer que se trata de uma prática de liberdade. É navegar por um oceano onde memória, identidade e inovação se encontram, criando novas rotas para a economia e para a cultura.

Cada prato preparado, cada produto vendido e cada história contada se tornam parte de uma narrativa maior, que afirma a potência das comunidades negras em construir futuros sustentáveis e autônomos.

Essa é uma travessia que nos convida a ir além do prato: a ver a cozinha, o mercado e o empreendimento como territórios de disputa e criação, onde se plantam sementes de dignidade e se colhem frutos de transformação social.


Texto: Lourence Alves [@lourencealves]. Professora na Universidade Federal da Bahia, pesquisadora, cozinheira e escritora. Filha de Iemanjá e mãe de Carolina Maria, navega entre panelas, livros e memórias, unindo a cozinha e a palavra como territórios de afeto e resistência. Doutora em Alimentação, Nutrição e Saúde, dedica-se a estudar e ensinar a gastronomia em diálogo com culturas afrocentradas, religiosidades e saberes que desafiam o colonial.

Esse conteúdo é fruto de uma parceria entre Mundo Negro e Feira Preta.

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