
Kananda Eller, conhecida nas redes sociais como Deusa Cientista, tem aproximado a ciência de pessoas negras e periféricas. Somando mais de 500 mil seguidores no Instagram e no TikTok, a química e mestra em Ensino de Ciências Ambientais pela USP, explica que seu objetivo é mostrar que a ciência “faz parte da história delas e que elas podem se apropriar desse conhecimento para mudar a qualidade de vida delas”, disse em entrevista ao Mundo Negro.
Desde o início da pandemia de covid-19, em 2020, Kananda ampliou seu conhecimento para as redes, levando informações científicas de forma acessível e descolonizada para comunidades que historicamente foram excluídas desse campo. “Trazer referências de intelectuais negros para alimentar o imaginário coletivo das pessoas negras de que elas são intelectuais, foi o que me fez ir pra internet.”
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Além de trazer referências de pesquisadores negros, Kananda mostra como a química está presente no cotidiano, por exemplo, desmistificando produtos usados na desinfecção de alimentos e compartilhando dicas práticas para a rotina em casa.
Recentemente, ela entrevistou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, onde conversaram sobre o retrocesso da PL da Devastação, o perigo do Brasil para os ambientalistas, e a vulnerabilidade social das comunidades tradicionais. O encontro será disponibilizado em breve nas redes sociais da influenciadora.
Leia a nossa entrevista completa abaixo:
MN: Como surgiu a ideia de tornar a ciência um território de representatividade, especialmente para pessoas negras e periféricas, nas redes sociais?
Deusa Cientista: A ideia de tornar-se acessível para pessoas negras e para comunidades periféricas surge assim, foi um processo. Eu tinha acabado de me formar em química, eu tinha estudado sobre formação de professor de química e como os professores relacionavam química com essas discussões raciais e eu me deparei com muitas discussões sobre racismo científico. Então eu percebi que o meu lugar seria muito mais interessante na internet do que na sala de aula, porque eu conseguiria trazer referências para professores e consequentemente também pra comunidade negra, pra comunidade periférica de como discutir a ciência para nossa comunidade. E aí quando veio a pandemia, foi aquele momento em que todo mundo tava falando sobre ciência, né? A maioria das pessoas da minha própria comunidade também vinham até mim, querendo entender sobre o que estava acontecendo, e eu comecei a fazer esse trabalho de aproximação da ciência das pessoas para que elas entendam que isso é algo que faz parte delas, faz parte da história delas e que elas podem se apropriar desse conhecimento para mudar a qualidade de vida delas. Durante a pandemia, a maioria dos divulgadores científicos, até hoje, essa comunidade ainda é muito branca. Então, trazer referências de intelectuais negros para alimentar o imaginário coletivo das pessoas negras de que elas são intelectuais, que houveram muitos intelectuais e que elas podem continuar produzindo conhecimento para que a gente não morra dentro desse lugar do pensar, do escrever, foi o que me fez ir pra internet.
MN: Durante esse período enquanto cientista e criadora de conteúdo, houve algum momento mais específico que para você reforçou a importância da divulgação científica de forma acessível?
Deusa Cientista: Eu venho de uma trajetória que eu sou do subúrbio de Salvador em Plataforma. Lá eu tinha um pré-vestibular social e nesse pré-vestibular social, a gente dava aula para que os estudantes pudessem acessar as universidades. Eram aulas gratuitas. Eu era professora de química, me formei assim como professora na prática. Nesse pré-vestibular, isso foi muito marcante para a minha trajetória. Quando eu fui para a internet, eu entendi que o meu lugar estava mais no lugar de trabalhar para essa opção pública, de ajudar, compartilhar ou trabalhar junto com a cultura do país, de trazer pro imaginário coletivo das pessoas essa ideia sobre essa ciência na perspectiva acessível, descolonizada. E eu vou para diversos lugares para fazer isso, para as escolas públicas. Até nas universidades públicas, porque isso não é uma coisa que a gente aprende na universidade. Se a gente aprendesse, eu não teria estudado isso fora dela, eu teria estudado dentro da universidade. Já fui para espaços, onde jovens, adolescentes, cumprem medidas socioeducativas para falar sobre ciência, para falar sobre esse imaginário, trazer referências de representatividade para essas pessoas e tornar a ciência mais acessível. Até a forma, a linguagem que eu utilizo, tudo isso são estratégias que eu vou usando para deixar as coisas mais fáceis, para mostrar que não é um bicho sete de cabeça, para tornar a ciência mais próxima das pessoas. Porque a ciência, essa ciência ocidental, ela se colocou muito no pedestal, ela se distanciou da comunidade. E isso espalha muito a gente, né, em cenários, por exemplo, como foi a pandemia, em que ficou fácil também desconfiar da ciência em alguns momentos do movimento antivacina, muita desinformação, muitas notícias falsas. Então, quando a gente tá próximo, quando a gente entende como que é, quando a gente entende que a gente faz parte disso também, fica muito mais fácil de se trabalhar junto com a população, que hoje no Brasil é maioria negra.
MN: Como enxerga o papel da ciência na luta por equidade e inclusão social?
Deusa Cientista: Eu acredito que a ciência, a filosofia, ela pensa e teoriza muito as formas da gente se comportar, viver no mundo. Então, a ciência é muito importante para que a gente consiga melhorar a qualidade de vida das pessoas, para que a gente tenha uma sociedade mais equânime. Então, pensar uma ciência que sirva ao povo, pensar uma ciência que traga respostas pro povo. Eu vejo, por exemplo, uma vez eu estive no Rio Grande do Sul para fazer uma palestra na universidade lá e aí tinha uma mãe de santo de uma ilha em Porto Alegre. E antes de acontecer o desastre ambiental, a casa dela já tinha sido inundada. Ela tava mostrando lá na universidade Unisinos, como que a casa dela estava inundada, a água passava, chegava perto do topo da geladeira. E ela falou assim: “Cadê a ciência que não tava aqui para me avisar que a casa ia alagar?” Então assim, quando a gente tem a inserção de jovens negros nas universidades, jovens, adultos, mais velhos, nas universidades, a gente tem uma demanda maior pela discussão sobre a comunidade negra que era esquecida pela ciência. Então, se a gente não tem dados sobre a comunidade negra que discrimine, que entenda que as pessoas negras são mais afetadas em termos de saúde, educação, aprendizagem, qualidade de vida, impactos ambientais, a gente não vai ter como criar políticas para essa comunidade, porque ela é invisível aos dados científicos e invisível ao que a gente tá pensando. Se a gente não sabe, a gente não tem como resolver o problema. Então, a ciência tem que partir desse princípio, de entender, de não negar mais a existência de pessoas negras, tanto na produção de conhecimento científico quanto nos dados, de não usar os nossos corpos como objeto, como a eugenia fez, de usar os corpos de pessoas negras como objeto e trazer respostas para ciência e fingir que aquelas pessoas não existem ou que não eram pessoas. E a gente precisa ter muito cuidado porque isso ainda acontece hoje em outra proporção. Então, a ciência vai trazer mais qualidade de vida para as pessoas, ela vai trazer mais dados e respostas para que a gente consiga trazer uma qualidade de vida e uma vida plena para as pessoas negras.
MN: Que impacto você percebe que seus conteúdos tem na autoestima e no senso de pertencimento de cientistas negros e negras?
Deusa Cientista: A gente costuma estudar no marketing o público alvo e os públicos que a gente tá atingindo, mas eu sou muito feliz de ver que tem crianças e tem idosas e tem pessoas da minha idade que se afinam e que são impactadas com o meu conteúdo. Então as crianças conseguem criar no imaginário dela a existência de cientistas negras. E isso faz elas terem orgulho de quem elas são. Não veem elas mais somente com a corda no pescoço quando aparece nos livros didáticos, na aula de história durante a escravidão e acabou. Elas sabem que existe uma perspectiva de futuro para elas e que elas fazem parte desse futuro. Para muitas mulheres mais velhas, elas veem o quanto os sonhos se passaram pela frente delas por causa da violência do racismo, do machismo, enfim. Então, quando elas veem, elas falam assim: “Ah, eu quero voltar para a universidade”. Já vi muitas histórias de pessoas que falaram que estavam voltando pra universidade depois que viram o meu conteúdo. Para as pessoas que estão ainda na universidade, elas também são violentadas até hoje. Porque esse processo de desigualdade, de poucos orientadores negros, de não ter um letramento racial nesses espaços, existe uma disputa muito grande. Isso afeta a nossa autoestima, afeta a nossa vontade de permanecer, afeta a nossa vontade de pesquisar sobre nós mesmas. Então, quando você entende que o que você pensa, o que você vive é válido, é importante, existem pessoas que estão fazendo isso também, a gente se sente forte, a gente se sente capaz de continuar a nossa história, dar continuidade ao que a nossa ancestralidade fez. Então, eu sinto que é sempre um reforço dessa autoestima, o meu conteúdo para comunidade negra.
5 – Recentemente, você entrevistou a ministra Marina Silva. Como surgiu essa oportunidade e que reflexões você trouxe neste contato com a Ministra do Meio Ambiente?
O convite chegou através da comunicação do governo federal brasileiro e eles chamaram alguns influenciadores para fazer uma série de vídeos entrevistando a ministra Marina Silva e vai lá no perfil deles, no nosso. Foi um momento muito enriquecedor, a ministra Marina Silva tem uma trajetória longa na política e ela é muito profunda nas coisas, tudo o que ela vive. Ao mesmo tempo muito poética e muito conhecedora assim do trabalho de base, da política real e enfim de outros setores da sociedade no geral. A minha pergunta com ela foi com foco na educação para falar um pouco sobre a PL da Devastação que foi um retrocesso no Brasil, falar um pouco sobre desmatamento. Para finalizar, eu falei sobre o Brasil ser um país perigoso para os ambientalistas. Eu trouxe essa discussão junto com ela, que ela também entende e reafirma isso no discurso, dos indígenas, das comunidades quilombolas, dos catadores de materiais recicláveis, que são as pessoas que estão na base mesmo dessa discussão da sustentabilidade, do meio ambiente, e que são em sua maioria negros, indígenas, pessoas em vulnerabilidade social muitas vezes, porque elas nem sempre, essas comunidades tradicionais, estão em vulnerabilidade social, mas elas subsistem muitas vezes sem o apoio das políticas. E quando a gente tem um impacto os impactos ambientais chegam primeiro. Então eu pude discutir com ela sobre esse presente, porque quando a gente vai falar sobre sustentabilidade, fala muito que o planeta vai aquecer, que o nível da água do mar vai subir. Só que quando a gente vai falar sobre essas comunidades tradicionais, elas já estão vivendo isso agora. São comunidades que muitas vezes moram em territórios que ofertam água para cidades, para lugares onde o bioma já foi altamente devastado, e eles vivem uma lógica de existência ali que preserva esse meio ambiente. Mas ao mesmo tempo é muito comum você ver regiões, territórios assim que muitas vezes fornece a água para as cidades urbanas, os centros urbanos e as capitais, e que existe ali uma falta de água, uma escassez. Então, toda essa contradição da desigualdade social e do desequilíbrio ambiental. Então, quando a gente olha para a parte social, o desequilíbrio ambiental também tá aí nessa desigualdade. E foi isso que eu pude conversar com ela, tentei trazer esses aspectos.
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