
Por: Fayda Belo – advogada, TEDx Speaker e consultora em crimes de gênero e direito antidiscriminatório
Com o anúncio da aposentadoria do ministro Luís Roberto Barroso, reacendeu-se o debate sobre a urgência de uma nova indicação feminina para o Supremo Tribunal Federal, hoje composto por dez homens e apenas uma mulher, a ministra Cármen Lúcia.
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Mas antes de celebrar a ideia de “mais uma mulher”, é preciso fazer uma pergunta essencial: de que mulheres estamos falando?
Desde o Império, o poder no Brasil foi planejado, exercido e reproduzido por homens. Em mais de 130 anos de existência, o STF teve apenas três mulheres em sua composição, e todas elas, mulheres brancas.
Esse dado revela o quanto os espaços de poder e decisão no universo jurídico ainda permanecem reféns de uma lógica patriarcal e colonial, sustentada por um racismo epistêmico que invisibiliza, deslegitima e silencia a intelectualidade das mulheres negras.
O racismo epistêmico retira das mulheres negras o direito de serem reconhecidas como elaboradoras de conhecimento, formuladoras de teoria e intérpretes legítimas da justiça, desqualificando o conteúdo do saber e as credenciais pelo corpo que as carrega, impedindo que o sistema jurídico se beneficie da pluralidade de intelectualidades e epistemologias que poderiam corrigir vieses, ampliar horizontes e
humanizar decisões.
Quando o debate público sobre a vaga no STF se limita a “ter uma mulher”, sem racializar à discussão, ele reproduz o mecanismo de reconhecer o gênero como critério de inclusão, mas mantém a branquitude como critério de legitimidade e a exclusão continuam apenas sem o constrangimento do racismo declarado.
O discurso de que “basta ser uma mulher” parece progressista, mas é uma armadilha retórica, pois desracializa o debate e transforma o gênero em uma categoria isolada, produzindo uma igualdade seletiva que beneficia apenas algumas mulheres e deixa intactas as estruturas que mantêm as demais à margem.
Da mesma forma, o argumento de que não importa a cor, desde que seja uma mulher soa inclusivo, mas é, na verdade, a defesa da manutenção da branquitude como norma, o que no Direito, é o que se chama de discriminação indireta: não se proíbe explicitamente a presença de mulheres negras, mas se estrutura o discurso e o processo de escolha de modo a garantir o mesmo resultado de exclusão.7
Trata-se de uma forma de perpetuar um sistema de justiça que se diz imparcial, mas continua estruturalmente excludente.
A indicação que o presidente Lula fará para a vaga deixada por Barroso é, portanto, uma oportunidade histórica de romper com essa lógica. Não se trata apenas de corrigir o desequilíbrio de gênero, mas de enfrentar o pacto da branquitude que mantém mulheres negras afastadas das mais altas instâncias do poder jurídico.
O Brasil não precisa apenas de mais uma mulher no Supremo. O Brasil precisa que essa mulher seja uma mulher negra, porque a história já mostrou que é possível ampliar a presença feminina sem alterar as hierarquias raciais que sustentam o poder.
Por isso, a não indicação de uma mulher negra não será apenas uma omissão política, será também um ato de continuidade colonial, que reafirma quais corpos podem decidir e quais só podem ser julgados.
O que está em debate, portanto, não é apenas gênero, mas quais experiências, saberes e epistemologias o Estado brasileiro considera dignos de ocupar o vértice do seu sistema de justiça.
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