Texto: Shenia Karlsson
Finalmente chegou o dia e acabou a agonia, Davi Brito consagrou-se campeão do BBB24 numa vitória épica, histórica, belíssima e encheu o coração dos brasileiros de felicidade diante da luta intensa travada por ele, uma luta que os cidadãos comuns conhecem bem no cotidiano. Lavamos a alma! Nos emocionamos, choramos, nos revoltamos diante das violências por ele sofridas, levamos a discussão para a internet, defendemos, lutamos aqui fora cada um de sua maneira, e ele lá dentro, resoluto.
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Eu passei a acompanhar a trajetória do Davi e absolutamente tudo sobre ele me encantava, sua história, seu jeito de ser, sua espontaneidade, sua generosidade mas havia outros aspetos que muito me interessavam, suas estratégias, a gestão das emoções, sua inteligência, sua perspicácia, sua sabedoria, sua autodeterminação, sua segurança e sua autoestima e foram esses últimos o motivo de ter angariado tantos dissabores na casa mais vigiada do Brasil.
Em psicanálise o Davi seria a personificação do retorno do recalcado.
Calma Calabreso!
Numa clínica voltada para a comunidade negra e racializada, durante todos esses anos de atuação acabei por acolher pessoas que adoecem por conta do racismo. As maiores dificuldades é saber como atuar e se comportar nos espaços hostis para nossos corpos e isso tem sido o maior desafio. É bem verdade que o BBB é um caso extremo e que impõe desafios extremamente complexos, entretanto pode sim servir de objeto de análise e assim se pensar em diferentes maneiras de se preservar em meios violentos. Na universidade, no trabalho, com amigos, em eventos sociais, com famílias … todo lugar é um potencial espaço de violência.
Eu como psicóloga, entendi que apesar da vitória o custo foi alto e a saúde mental do Davi corria perigo. Nosso campeão sofreu e muito. O jovem negro é o grupo social que mais esteve nas estatísticas de suicídio nos últimos anos, sem contar com o genocídio insistente neste país. Contudo, alguns aspectos do comportamento do Davi assim como características de sua personalidade ajudaram bastante para que esse enfrentamento fosse muito bem feito e eu vou citar alguns:
1- Quebra de estereótipos
Ao contrário do conjunto de estigmas aferidos aos jovens negros tais como sujo, desorganizado, fedido, irresponsável, mal educado, imprestável, preguiçoso, violento, perigoso, lascivo, burro dentre outros adjetivos que costumam colar no corpo de pessoas negras, Davi demonstrou totalmente o contrário não somente através de palavras mas principalmente por sua conduta, seu comportamento consistente do começo ao fim. Sim, ele fez questão de deixar escuro: Olha, me respeita, não sou o que você pensa de mim, tá?! Isso gerou um enorme desconforto porque a representação do corpo não condiz com a realidade, o que deixa a branquitude confusa, angustiada, sem nenhum depositário de suas faltas e desvios e consequentemente atacam a fim de confirmar tudo aquilo que é insuportável não ver em si próprios, e neste caso, as tais virtudes. Subverter a lógica racista é indispensável e revelador em qualquer espaço que estejamos.
2- Autodeterminação e Autoestima
Davi com apenas 21 anos possui uma consciência racial bem construída, identidade racial saudável, usa bem sua origem como sua maior potência. Por ter muito bem determinado o seu lugar de origem e consequentemente seu lugar social, Davi tinha ciência de suas potencialidades e mostrou tudo sem o menor constrangimento, ele sabia que poderia ser uma única chance e que alguém poderia reconhecer. Embora tenha discorrido muitas vezes sobre sua trajetória de faltas, ele sabia que as limitações que encontrou em sua vida eram oriundas das contingências de ser um rapaz negro e pobre no Brasil e nunca por incapacidade. Ele demonstrou estar confortável com seu corpo, com sua personalidade e com suas potências. O Autoconhecimento é uma arma poderosa, portanto Davi nos ensina a não permitir ser determinado por ninguém a não ser por nós mesmos.
3- Comunicabilidade e Voz
Com um repertório bem sofisticado, mas diferente do letramento racial dos ativistas, intelectuais e militantes que abusam muitas vezes do excesso de conceitos,
Davi comunica tudo através de uma linguagem palatável, democrática e condizente com a realidade da maioria da comunidade negra brasileira. É um comunicador nato. Ele falou sobre todos os conceitos através de exemplos pessoais, histórias, casos…um storytelling de prender a atenção inclusive daqueles que não se identificavam com ele. Rapaz falante, ele em nenhum momento deixou de comunicar o que pensava, sentia e achava mesmo diante inúmeras práticas de silenciamento ao longo do experimento. Tentaram calar ele mas não funcionou pois inteligentíssimo como é, lançou de várias formas de comunicação e parecia que até em situações de embate ele achava a medida certa. Calavam ele de uma forma, ele achava outra forma de falar. Vale ressaltar que muitas vezes nos sentimos exaustos por não sermos ouvidos, já o Davi falava por ele, porque sentia necessidade e não necessariamente para alguém ouvir ou concordar com ele. E o Brasil ouviu, e muito bem. Ao estilhaçar a mordaça que colocam em nossas bocas estamos treinando o exercício de se colocar diante de situações importantes.
4- Afetividade assertiva e Objetividade
Existe um aspecto muito importante que eu observo em pessoas negras que sofrem não só em ambientes de trabalho mas em muitos outros espaços : a preocupação em ser aceito. Num país em que o corpo negro foi destituído de qualquer investimento afetivo positivado, é comum – por questões profundas e inconscientes – uma pessoa negra esperar aceitação principalmente de pessoas brancas no intuito de integrar-se ao espaço e interagir humanamente com as pessoas que ali estão. O problema é que nem sempre esse espaço nos acolhe, ou quase nunca. Um exemplo foi o cuidado que o Davi tinha de cozinhar para todos, e sabemos que este é um ato de afeto, afeto este rapidamente rejeitado pela maioria. O que Davi fez? Seguiu. Entendeu rápido que o afeto é valioso e que iria oferecer de forma verdadeira para quem o merecia, e foi o que ele fez. Sua atenção estava concentrada em como ele iria ganhar o prêmio. Notem que as alianças e amizades nunca foram sua prioridade e sim eliminar um por um e vencer a competição. Ele aliançou com as pessoas possíveis e nunca se lamentou por alianças que não aconteceram, Davi não foi lá fazer amigos. Pessoas negras e racializadas nunca devem esquecer o principal objetivo de qualquer plano em suas vidas. Se for para a universidade, seu objetivo será qual? o diploma? se for para o trabalho o objetivo é qual? O salário? Uma promoção? Então, foco no objetivo. Tudo a mais será apenas bónus.
Esta receita em que os componentes quebra de estereótipo, autodeterminação e autoestima, comunicabilidade e voz, afetividade assertiva e objetividade foi a mistura perfeita para que Davi mantivesse vantagem diante dos outros participantes apesar de inúmeros movimentos de marginalização, demonização e difamação por parte dos insatisfeitos. O Brasil identificou-se com ele, o país assistiu tudo e escolheu seu campeão, embora não seja a norma a escolha de jovens negros como a representação da maioria. É que Davi quando entrou já havia se escolhido. Que lição! Dessa vez algo nos uniu, a dor, a injustiça mas também a esperança por um país livre, com pessoas livres, sonhadoras e felizes.
Obrigada Davi!
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