Da colônia para os escritórios: o que podemos aprender ressignificando Francisca da Silva de Oliveira no Mês das Mulheres

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Da colônia para os escritórios: o que podemos aprender ressignificando Francisca da Silva de Oliveira no Mês das Mulheres
Imagem: Reprodução

Todo ano, o mês de março me remete ao vale comum da sororidade seletiva, mas neste março de 2025, na minha visão, o vale comum migrou para o da exclusão sistemática. Veja bem, não sou historiadora nem especialista, mas sou uma mulher preta que ocupa espaços onde “silenciar” ou “tokenizar” são práticas comuns. E é justamente nesses espaços que aplico estratégias para lutar e sobreviver de forma coletiva. Uma das minhas estratégias é buscar a verdadeira história do meu povo. E uma das minhas certezas é que, ao longo da história, as conquistas femininas frequentemente vieram acompanhadas de uma exclusão sistemática, cada vez mais tangível: os direitos alcançados por algumas mulheres não se estendem a todas.

Um exemplo é o direito ao voto feminino. No Brasil, a partir de 1932, onde a alfabetização era um requisito, mulheres pretas e pobres, que, devido à marginalização pós-abolição, tinham menos acesso à educação formal, foram excluídas. Em 2025, a exclusão sistemática continua, o que pode ser constatado por meio de uma pesquisa simples sobre a quantidade de mulheres pretas apagadas das redes sociais corporativas, da mídia em geral, de eventos de relevância nacional e internacional, da diminuição de “Jobs” para influencers e palestrantes pretas em assuntos técnicos, além do debate sobre reconhecer as mulheres pretas como parte fundamental das conquistas femininas. Retornamos à zona de conforto, em que mulheres pretas não são protagonistas, apenas espectadoras ou beneficiárias tardias da suposta sororidade.

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A síndrome da sinhá repaginada tem uma nova faceta: a síndrome da aliada fashion, Aquela que, conforme o tema da moda, prioriza o comprometimento com a mudança, mas, quando a moda passa, guarda no armário para usar apenas quando for obrigatório. E aqui entra a importância de ressignificar as narrativas das mulheres pretas em nossa história. Começo ressignificando uma das maiores mulheres pretas que já tivemos: Francisca da Silva de Oliveira, que você conhece como Chica da Silva.

Em 2024, estive na casa dela, refiz alguns dos seus passos e fui à igreja onde ela está enterrada. Todos os relatos ouvidos durante esta visita eram sobre a Chica da Silva do imaginário, da maldade, da sexualidade ou da esposa, incluindo a exposição retratada nos quadros de cada cômodo da casa: Chica e os 7 pecados capitais. Nenhuma palavra sobre a potência dessa mulher ou sobre como a escolha das gigantes Zezé Motta e Taís Araújo para interpretá-la no filme e na novela ajudou a evidenciar o quanto essa mulher preta foi bela e potente, para além dos vieses de ambas as obras. Sua história foi resumida a relatos trágico-cômicos. O incômodo me fez agir e, ao menos para o grupo de 10 pessoas não negras que estavam comigo, a história da Chica da Silva foi ressignificada para a história de uma mulher preta, que desafiou narrativas convencionais e obrigou a todos a questionar a forma como interpretamos o poder feminino e a ascensão social de mulheres pretas ao longo do tempo.

Chica viveu no Brasil colonial no século XVIII, um período em que a escravidão não era apenas um regime legal, mas a base da sociedade. Ela alcançou um status que pouquíssimas poderiam sonhar naquela época, conquistou bens, poder e influência política em um contexto no qual a negritude significava subjugação e invisibilidade. Suas chamadas “controvérsias” são frequentemente julgadas sem o contexto histórico adequado e, fazendo um paralelo com os dias atuais, se Chica da Silva fosse uma mulher da geração X ou Z, talvez sua história fosse reduzida a um post polêmico, uma análise superficial de suas decisões ou uma avaliação binária de “certa” ou “errada”. Mas o que podemos aprender com essa mulher que, mesmo em um sistema brutalmente excludente, encontrou formas de existir, resistir e exercer poder?

É impossível não traçar um paralelo com a realidade das mulheres pretas no mercado de trabalho hoje. As síndromes foram repassadas como herança a algumas pessoas e a mudança que ocorreu não foi o suficiente para nós. A ascensão de mulheres pretas a posições de liderança ainda é tratada como uma exceção. O mesmo olhar que julgava Chica por buscar espaços de poder ainda recai sobre mulheres pretas que alcançam destaque em suas carreiras – seja no setor corporativo, na política ou no empreendedorismo.

Ela nos ensinou, e nos ensina até hoje, possíveis estratégias para subverter as regras do jogo, desde a construção de uma rede de influências até a ostentação de riqueza como forma de afirmação social, estritamente quando é necessário. Criou um legado e encontrou caminhos para existir em um mundo que tentava apagá-la, jamais sozinha, mas dentro das possíveis formas de aquilombamento da época. Agrupava poder, identidade e resistência em seus atos e, por isso, alguns dos nossos a excluíam também, pois o pensamento de que a causa serve ao individual e não ao coletivo, infelizmente, também era presente naquela época. Chica, ao seu tempo, era nossa representatividade tangível. A nossa capa de revista corporativa e a palestrante que falava e ecoava em nós.

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por meio do documentário Chica da Silva – A descoberta do testamento, faz uma reparação histórica importante sobre sua vida e nos leva a uma reflexão que não pode faltar: qual é o nosso papel na mudança que tanto falamos? Estamos só compartilhando posts ou estamos de fato agindo para transformar o mundo ao nosso redor? Chica da Silva nos lembra que é possível desafiar as estruturas, mas isso exige mais do que palavras — exige atitude, coragem e, muitas vezes, uma boa dose de estratégia.

Dedico este texto a todas as Chicas brasileiras, as Chicas mulheres pretas da região de Serro e Milho Verde – MG, as Chicas do Coletivo Quilombo Ausente Feliz, as Chicas mães solos, CLT de sol a sol, cuidadoras diretas e indiretas do futuro preto do Brasil, as Chicas que sofrem apagamento e silenciamento de suas lutas diárias e as Chicas da Silva deste Brasil que chamo de mãe, irmãs, primas, tias, sobrinha, amigas e companheiras de lutas.

Documentário Chica da Silva – A descoberta do testamento

Disponível no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=9pg_FVfJnu8&t=477s

Livro: Chica Da Silva – Romance De Uma Vida

Autora Joyce Ribeiro- Editora Planeta

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• Mais de 13 anos de experiência em Resiliência Corporativa, gerenciamento de riscos & crises corporativas, gestão de operações e controles internos; • COO Zeka Edu Digital, professora de negócios com propósitos, startups e corporativo na FIAP, professora de ESG Ibmec/Exame Academy. • Comitê de ESG da Coty e conselhos consultivos da QPIS e Preta Hub; Certificada na 6º turma do PDEC- Programa de diversidade em Conselhos do IBGC, Alummi do C101- Conselheiras 101, com foco em formação de mulheres negras em conselhos • Publicações em livros de ESG, Gerenciamento de riscos e Resiliência Corporativa; • MBA em Business Information Security e Cyber Security pela Fiap, MBIS em Segurança da Informação pela UNIP e MBCI- Master Business Continuity Certificate pelo Business Continuity Institute e Pós graduação em relações étnico-raciais; • Finalista como grupo de diversidade de gênero Todos pelas Mulheres na premiação Chambers Law- categoria LAC; Grupo de trabalho de diversidade da Câmara Americana de Comercio e Cenesg.

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