Corporate Hair e a escada corporativa dos cabelos crespos

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Corporate Hair e a escada corporativa dos cabelos crespos
Foto: Reprodução

Texto: Viviane Elias Moreira

“Um dia lisa. Outro cacheada. Cada dia uma surpresa. Deus nos deu um dom. Não é um talento. É um DOMMMM. É uma coisa mais profunda. Deus deu o dom para mulheres negras combinarem com qualquer cabelo.” Foi assim que Patrícia Ramos sacudiu as redes há algumas semanas. Várias mulheres pretas, de criadoras de conteúdo a artistas, acompanharam o viral e cada uma à sua maneira exaltaram o seu dom. O que me chamou a atenção foi especificamente um grupo de mulheres pretas que se silenciaram neste viral: mulheres pretas executivas. 

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Uma ali e uma outra acolá celebridade-corporativa não resistiu e aderiu a trend, mas, em sua maioria, no modo “amigos próximos”.  O que me fez pensar se aquela ferida antiga ainda é tão presente no ambiente corporativo e estamos fingindo que ela não está lá: a negação dos cabelos crespos como parte da presença legítima e bem-sucedida de mulheres e homens negros nos espaços de liderança. 

Durante anos e, para falar a real, ainda hoje, nós escutamos (mesmo que nas entrelinhas) que cabelo crespo não é “profissional”, que trança não combina com cargo de liderança, que black power é “atitude demais” para um ambiente “corporativo”. Mas o que é, afinal, essa tal “imagem profissional”? E antes que você comece com ‘ah, mas não é mais assim’. É sim. Só que agora silenciado. O silêncio estratégico. Vai lá no Linkedin e analise as fotos das poucas lideranças negras que temos no topo das empresas. Viu? Tô te falando…

Fui para uma pesquisa de campo, obviamente, começando com amigas topzeras executivas que entre um vinho e um petisco, chegaram a uma conclusão: em 2025 até podemos usar o cabelo que queremos, mas assumir o cabelo crespo, tranças ou dreads em nossos CNPJs, especialmente em cargos de liderança, é um ato de afirmação e de ruptura com séculos de opressão estética. É reescrever o que significa “estar pronta” para liderar. É trazer a ancestralidade para a mesa de reuniões. 

Com a minha pesquisa em andamento, chego no documentário ‘Hair Tales: Orgulho do Meu Cabelo‘ disponível no Disney+ e Apple TV, que mergulha profundamente nessa discussão. Produzido por Tracee Ellis Ross, Oprah Winfrey e Michaela Angela Davis, a série é um verdadeiro manifesto sobre o cabelo como território de identidade, orgulho e libertação para nossa comunidade.

Cada episódio evidencia o quanto os fios crespos carregam narrativas de resistência, autoestima e reinvenção. A atriz e ativista Michaela Angela Davis fala que “ser uma mulher negra no mundo corporativo é ser observada o tempo todo. E quando seu cabelo não se enquadra no padrão, ele vira o centro da conversa e não seu talento”. Um dos cabeleireiros comenta: “Aqui a gente não corta só cabelo, a gente corta traumas. A cada penteado, uma reconstrução de autoestima. Pra muitos, assumir os dreads ou o black é também um posicionamento político. É mostrar que competência não tem textura capilar. Hoje, ver uma mulher negra liderando uma equipe, entrando numa sala de reunião com seu cabelo natural, usando tranças coloridas ou um turbante elegante, é mais do que estilo: é uma forma de dizer “eu estou aqui inteira”.

Na terra do tio Sam, os salões de cabeleireiros são verdadeiros territórios de segurança e acolhimento para a população negra. Para além do cuidado estético, esses espaços funcionam como centros de troca, fortalecimento e construção de comunidade. São os lugares onde se reafirma que “nosso cabelo é um dom”, como disse Patrícia. Foi aí que encerrei a minha pesquisa de campo. Em um salão.

Conheci o Daniel, vulgo Didão, no meu momento de dilema do “corporate hair”. Didão atua há mais de 21 anos no segmento, já rodou o Brasil inteiro ministrando cursos sobre a técnica de tratamento térmico criada por sua mãe (uma mulher preta) e a qual ele aprimorou nos últimos anos e, junto à sua irmã Daiane, atende clientes brasileiras, africanas e europeias em um salão localizado na Vila Carrão, ZL de Sampa.  Ao ser questionado por mim, confirmou mais uma vez o que não vem sendo dito, mas amplamente vivenciado. “Não importa de onde estas mulheres e homens negros chegam, aqui no meu salão, as queixas e, invariavelmente lágrimas, sempre tem o mesmo motivo: o racismo estético vivenciado no dia a dia do trabalho”.

Didão é um cara múltiplo, profissional, empresário, pai de 2 meninos, diretor de bateria, ativista, mas acima de tudo ele é um elo entre mulheres e homens pretos com o empoderamento, aceitação e adaptabilidade ao “corporate hair”, que nada mais é do que o código de vestimenta invisível e dolorido para os nossos cabelos. Didão completa que: “o que mais ouço é sobre o medo destas mulheres e homens de mostrar as suas verdadeiras raízes. Quando chegam no meu salão, alguns após anos de transição ou com danos nos cabelos após cortes químicos, os pedidos vão de raízes mais baixas, cortes na máquina, inspirações com fotos de cachos by mega-hair e cabelos mais aceitáveis para o trabalho. O meu trabalho é de um psicólogo corporativo informal: como elas vão se aceitar e como podemos enfrentar e resistir”. 

Esta altura já realmente com olhos cheio de lágrimas, comprovando o efeito que salões de cabelereiros têm para nossa comunidade, ouvindo relato dos outros clientes que já estavam envolvidos na conversa, o tema alcançou um outro prisma: a necessidade de se esconder os crespos, principalmente os 4B e 4C com processos químicos de mais diversos nomes. Foi aí que o Didão fecha o tema com o seguinte ponto: “Por isso eu não posso desistir, não posso permitir que o crespo não seja reconhecido como bonito. Quando aplico o tratamento térmico, diminuindo o fator de encolhimento e cuidando dos cabelos crespos eu só busco a preservação da nossa identidade, porque gente, no final o cabelo crespo é sobre a nossa potência e identidade”. Silêncio no salão acompanhado de lágrimas.

A pesquisa encerra sem um certo ou errado, mas a constatação que em 2025 o nosso cabelo continua representando a possibilidade de sermos quem somos sem concessões. A fala da Patrícia é real. Nosso cabelo crespo, cacheado, trançado, raspado ou com volume é dom, é identidade, é potência. E que nenhuma pessoa negra deveria ter que abrir mão disso para ser promovida, aceita ou respeitada. Nós queremos mais pessoas negras sendo celebradas não apesar de seus cabelos, mas com eles. Do jeitinho que são. Afinal, foi Deus quem deu.

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