Em todas as quebradas do país há grandes talentos. Em todas as periferias há milhares de novos olhares esperançosos para ganharem as telas, as artes, o mundo. Valter Rege, 37 anos, paulistano de Moema, São Paulo, o idealizador de curta-metragens como “Preto no Branco” teve a história iniciada de forma parecida como muitas pessoas pretas no Brasil. As possibilidades jogavam contra.
Sonho e cineasta estava intrínseco em Rege desde o início da adolescência. “Nunca fui bom em exatas, como sempre tive sonho com artes. Eu sempre achei que a qualquer momento eu iria ser contratado para escrever um filme. Fiz um plano de carreira aos 13 anos”, conta Rege que tinha contra si a dupla chance de ser invisibilizado por ser um homem preto e por ser gay. “Tive muitos problemas na escola por conta do racismo e homofobia, pois eu era nitidamente uma criança gay, então a escola não foi um lugar de lembranças muito boas, mas fiz amigos que trouxe pra vida toda”, diz.
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Paralelo ao desejo de adentrar no mundo das artes, Rege precisou passar por uma década que ainda rejeitava fortemente a ideia de igualdade e equidade. “Eu fui adolescente nos anos 90, e aqui no Brasil a galera pouco se importava para OMS ter retirado a homossexualidade da lista de doenças. Eu era tratado como doente. Uma professora chamou a minha mãe na escola porque eu tinha sintomas de ‘homossexualismo’. A minha mãe disse que isso não era problema da escola. A primeira vez que meus pais de fato me viram com um companheiro foi quando fiz 30 anos e levei meu ex-marido com o qual fiquei 5 anos”, revela.
Valter buscou refúgio no exército como tentativa de ter certeza do que era, mas a experiência ruim só reforçou que ele não deveria deixar de ser a pessoa que sempre foi. “Eu tinha duas questões, me tornar mais masculino para não apanhar mais na rua, e conseguir dinheiro para pagar uma faculdade de comunicação. Mas no primeiro dia desisti, quando vi que ia ser um pesadelo. Um monte de meninos tentando tirar a barba a seco e ao mesmo tempo fazendo flexões com o rosto sangrando. Eu levantei e disse que não ia ficar, e o sargento disse que eu só tinha duas opções: ser preso ou um ano servindo (…) Atirar com fuzil, atravessar um rio de tirolesa e aprender a importância de trabalhar em equipe foi importante, mas era angustiante não ser eu mesmo. Até a voz engrossava, era terrível”, conta.
Os primeiros roteiros, faculdade e a influência de Beyoncé
Alfabetizado pelos gibis da Turma da Mônica, Rege começou a escrever roteiros em cadernos de brochura, já treinando para a futura profissão. Imaginava o sonho entre as linhas. “Eu não sei como, mas sabia a estrutura de roteiros, e já dividia as histórias em narrador, personagens e espaços onde aconteciam. Brincar de boneca me ajudava muito. No cortiço tinham algumas meninas que me emprestavam as bonecas, então eu construía as narrativas. Quando os meus pais encerravam a brincadeira, eu pedia alguns minutos para encerrar no ápice, como se fosse continuar no próximo capítulo. Com 12 ou 13 anos já estava enviando as cópias dos roteiros para revistas e produtoras”, revela.
O diretor e roteirista conseguiu bolsa no curso de Rádio e Tv na Belas Artes e cursou de 2008 a 2011 enquanto trabalhava na Faculdade Paulista de Artes. Apesar da rotina corrida, a experiência mostrou que estava no caminho certo. “Foi a melhor experiência. Porque eu já entendia das paradas, então ter câmera, uma ilha de edição, estúdio, era sonho realizado. Em 2005 eu tinha feito oficinas de vídeo e cinema no Centro Cultural da Serraria, em Diadema. Fiquei um ano sem trampar, indo a pé, mano. Era 1h30 para ir , mais 1h30 pra voltar, quatro vezes por semana, e ainda fazia teatro na AEB, antiga FEBEM da Imigrantes”, diz animado e prossegue: “Mas eu não tinha tempo de fazer estágio
Então usei a metade do curso para fazer um média-metragem chamado ‘Quero Ser Beyoncé’, conta Rege que escolheu uma Beyoncé embranquecida para agradar produtoras.
“Eu já sabia que o mercado era racista e a história era sobre uma garota que descobria a sua força através da música da Beyoncé. Eu esperava chegar no mercado e ter algo pelo qual eles se identificassem, para ter portfólio de faculdade. Eu ainda acreditava um pouco em meritocracia e só deixei de acreditar depois que entrei no mercado de trabalho”, diz mostrando conhecimento da realidade que cerca gente negra que quer fazer arte no Brasil.
“Para você ter noção na primeira produtora que entrei, os donos se referiam a mim como “o viadinho que fez um filme sobre Beyoncé”, revela.
Preto no Branco, o curta que mudou sua vida
Sem os equipamentos modernos, usando apenas papel, caneta, talento para a comunicação e convicção, Valter Rege conseguiu resenhas sobre o filme sobre Beyoncé na Band e na Caras e algumas portas se abriram.
Um dos seus maiores orgulhos é o curta “Preto no Branco”, trabalho de direção precisa que conta a história de um jovem preso ao sair do trabalho em um shopping na cidade de São Paulo. Durante as exibições em festivais, Rege observou a reação da plateia diante da indignação do personagem principal ao ser acusado de roubo injustamente. “Comecei a observar a plateia e descobri que faltava o tiro na testa do protagonista”, conta se referindo ao constante sofrimento do preto nas telas do cinema. “Então formulei uma palestra para levar o filme para o público-alvo: e comecei a oferecê-la para professores”, diz.
Com o público-alvo certo, o filme ganhou reconhecimento e se mostrou um espelho para muitos jovens periféricos que podiam se identificar com a raiva de um jovem preto. “É como se ‘Preto No Branco’ fosse uma Disney, porque o preto grita e não morre”, conta.
Então Valter passou a frequentar ONGs e escolas, apresentando seus filmes e dando palestras. “Amo ir em escolas, eles choram, e eu seguro”, declara.
O filme rendeu uma experiência internacional inédita na vida do jovem diretor.
“Foi surreal. Eu já tinha sido selecionado para o festival de Montreal, fiz as inscrições sem falar inglês, tudo pelo Google tradutor. Fui selecionado para os festivais de cinema da India, o interfilm de Berlin, e o de cinema negro de Toronto e Canada. Pedi ajuda para a produtora que havia produzido o Preto No Branco, mas eles disseram que não era possível. Então fiz uma vaquinha na internet e consegui 7.500 reais. A turma de mídias sociais do Bradesco me deu mais uma grana, cerca de 5.800, aí mandei um projeto para Air Canada, pedindo desconto, e eles me deram 75%, ou seja, paguei 1.200,00 pra ir e voltar. Um cara que viu a vaquinha, pagou 7 diárias em um Hotel no centro de Toronto. Fique muito feliz”, relembra Rege.
Hoje seu curta é exibido em escolas e Rege aguarda resposta de editais onde vai mostrar uma adaptação de uma HQ (ele diz não poder dar detalhes).
Valter Rege é o olhar da quebrada para o mundo. De dentro para fora, de fora para dentro, retornando num ciclo de troca onde as origens jamais são esquecidas e a mensagem se perpetua por seus iguais. Merece um “olhar que demora”.
*Esse conteúdo foi criado em parceria paga com a Avon.
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