Essa história iniciada há mais de 500 anos, inclui a escravidão, um número incontável de mortes por opressão e negligência, a migração forçada, a apropriação de terras, a institucionalização do racismo e a destruição de culturas. Ela transformou a vida de milhões de africanos, árabes, asiáticos e europeus e configurou, efetivamente, a estrutura de poder mundial durante todo o século 20 e até hoje. ( Vron Ware)
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Carlos Eduardo Dias Machado*
Ao tratar da importância do conhecimento científico para a população brasileira devemos levar em consideração que os esforços a serem empreendidos para a ampliação do acesso dos negros aos ambientes de produção científica, hoje ocupado majoritariamente por brancos e amarelos, vão além da simples preparação para o atendimento das demandas materiais desse segmento no contexto da atual sociedade tecnológica.
Mais do que isso, atuação nesse campo do conhecimento impacta significativamente no imaginário e na autoimagem da população negra, na medida em que possibilita a seus membros identificarem-se e serem identificados como pessoas criativas, capazes de produzir conhecimentos considerados relevantes para a humanidade.
Para melhor compreensão do que estamos falando temos que trazer à tona o fato de que a exploração da escravidão da população originária da América e dos africanos, iniciada no século 15 pelos cristãos, construiu um sistema de privilégio aos homens e mulheres brancas no Brasil e no mundo. As bases do capitalismo ocidental utilizou o hard power o poder militar e o soft power, o poder de influenciar outros reinos e países por meios culturais e ideológicos, para a sua riqueza e supremacia mundial. A posição de poder dos brancos (material e simbólico) em nosso país tem este legado que é transmitido e ampliado através das gerações.
O imaginário sobre os asiáticos e o europeus são positivos e isto impacta em como eles se vêem e são vistos. A associação entre tais aspectos implícitos e inconscientes com conhecimento científico, tem uma relação direta com o fato de que o prestígio social adquirido pela ciência colocou as pessoas com “melhor desempenho” nessas áreas em uma condição social também privilegiada (meritocracia e networking), uma vez que o domínio da racionalidade científica em nossa sociedade ainda é sinônimo de superioridade intelectual, a despeito dos recentes avanços trazidos pela psicologia com o conceito das inteligências múltiplas, apresentado por Howard Gardner.
Não podemos deixar de mencionar a histórica participação da própria ciência ocidental na construção de estereótipos negativos em relação aos povos africanos e indígenas. As identidades e expectativas pessoais dos brancos foram moldadas por relações assimétricas de poder. Esta ideologia vinda da Europa (que então dominava o planeta) e Estados Unidos (então império emergente) no século XIX, municiou a elite intelectual branca brasileira com várias teses que defendiam a inferioridade física, moral e intelectual dos negros e indígenas, ampliando com isso, a hierarquia racial e a orientação de políticas governamentais como o incentivo à imigração de brancos de toda a Europa com objetivo de promover o branqueamento da população ─ a essa altura, a população negra e indígena do Brasil (maioria) foi considerada uma barreira ao ideal de progresso e civilização, pautado pelos parâmetros eurocêntricos seguidos pela classe dominante.
O racismo branco apesar das inúmeras desqualificações sofridas, ainda hoje, influencia o imaginário social, e é praticado mesmo em ambientes em que se espera a predominância da racionalidade e a descrença em mitos como na escola e universidade. Desta forma, vale lembrar as declarações do então coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Antônio Dantas em 2008:
O baixo QI dos baianos é hereditário e pode ser verificado por quem convive com pessoas nascidas na Bahia. (…) o berimbau é o tipo de instrumento do indivíduo quem tem poucos neurônios (…) Só sai aquele barulho, pu pu pu pu pu pu. Isso por acaso indica qualidade intelectual muito elevada? Não.
Sua fala tenta justificar o baixo rendimento do curso de medicina nas avaliações do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE do Ministério da Educação. Essa atitude discriminatória tem precedentes na própria história da Faculdade de Medicina, a qual no século 19, quando sediada no Terreiro de Jesus, Pelourinho, foi uma das grandes difusoras das teses pseudocientíficas que atentavam contra a imagem social dos negros e indígenas brasileiros. Raimundo Nina Rodrigues afirmava:
A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo. Na trilogia do clima intertropical inóspito aos Brancos, que flagela grande extensão do país; do Negro que quase não se civiliza: do Português rotineiro e improgressista, duas circunstâncias conferem a segundo saliente preeminência: a mão forte contra o Branco, que lhe empresta o clima tropical, as vastas proporções do mestiçamento que, entregando o país aos Mestiços, acabará privando-o, por largo prazo pelo menos, da direção suprema da Raça Branca. E esta foi a garantia da civilização nos Estados Unidos.
O que pensar das declarações do prêmio Nobel de medicina e um dos pais da genética, James Watson, no Jornal The Sunday Times, em outubro de 2007:
Todas as nossas políticas sociais são baseadas no fato de que a inteligência deles [dos negros] é igual à nossa, apesar de todos os testes dizerem que não. Pessoas que já lidaram com empregados negros não acreditam que isso [a igualdade de inteligência] seja verdade.
Esse retrospecto nos faz pensar também, como é complexo para as jovens estudantes negras e negros brasileiros terem bom desempenho nas escolas públicas e privadas onde impera a descrença em seu potencial e a expectativa do fracasso pesa como permanente suspeição contra eles. Local onde o ensino de ciências é extremamente eurocêntrico e cuja pseudoneutralidade da práxis pedagógica não contempla a análise crítica sobre a hegemonia branca da ciência, nem o papel da ciência ocidental na negação da racionalidade dos povos colonizados.
No entanto, nesses espaços, ao invés dessas reflexões, predomina um ensino mecanicista, que privilegia a mera resolução de exercícios, e que é entremeado por histórias triunfalistas das conquistas branca e masculina no campo da ciência. Com efeito, um estudante branco nunca tem vergonha de sua ascendência europeia quando ouvi a história apologética dos europeus, promovendo os avanços da ciência. Entretanto, para as estudantes negras e negros, índios e índias e mesmo as mulheres brancas, fica a seguinte pergunta: por que eles e não nós?
Essas questões emergem nas políticas educacionais desde a sua gênese em nosso país, devido à frequente “assepsia” feita no contar da história da ciência ocidental, que a torna “imune” em relação ao racismo branco e ao sexismo e que omite sua vinculação as propostas expansionistas do imperialismo europeu, o qual com seu caráter exclusivista condicionou à existência da genialidade de referências como Galileu e Newton a não existência de congêneres (Imothep, George Washington Carver e André Rebouças) entre as populações nativas e escravizadas, afetadas pelo colonialismo. Paulus Gerdes, por exemplo, considera que “as ‘histórias’ dominantes da matemática sugerem que (quase) não houve matemática fora da Europa, ‘esquecendo’ de que a colonização contribuiu para a omissão, estagnação e eliminação de tradições científicas nas Américas, África, Ásia e Oceania”.
Todo o conhecimento que recebemos nas escolas e universidades nos é ensinado que tem base greco-romana, como se antes de Grécia e Roma não tivessem existido outras civilizações. O método científico é considerado como a base da ciência moderna, utilizando os princípios da observação e da experimentação. Existe um engano ao afirmar e ensinar que a moderna ciência têm suas raízes na Grécia e Roma, como também é incorreto afirmar que o método científico iniciou-se na Europa com Roger Bacon (1219-1292), o filósofo inglês do século 13, Nicolau Copérnico (1473-1543) o astrônomo teuto-polonês do século 16, com o físico e matemático italiano Galileo Galilei (1564-1642) ou com o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), Descartes (1596-1650) ou Isaac Newton (1643-1727).
Todas as culturas que desenvolveram grandes construções ou monumentos, domesticaram as plantas, forjaram metais de qualquer composição, desenvolveram diversos tipos de tintas ou corantes, construíram barcos ou navios, compreenderam a astronomia, criaram formas de se tratar doenças, etc., todas estas culturas usaram o método científico.
Nenhum povo ou cultura criou o método científico, isto é uma atribuição humana. Defender que existe somente um método de desenvolvimento científico é deseducador.
Antes de considerar as Grandes Pirâmides do Egito (a única das sete maravilhas do mundo antigo de pé), Sungbo Eredo (a maior construção do mundo) na Nigéria, a grande Muralha da China, a Matemática e os Calendários Maia e Asteca, os templos da Índia, a astronomia dos babilônios, as construções olmecas, como honestamente podemos dizer que apenas os europeus desenvolveram o método científico? Vamos lembrar que a primeira civilização que se tem notícia é a dos Sumérios de c. 3.500 anos a. C., posteriormente temos o Egito (c. 3200 a. C) o Vale do Indo (c. 2500 a.C.) e a Grécia Micênica surge a cerca de 1300 anos antes de Cristo.
O argumento da separação da ciência do mito e do cosmos espiritual surgiu na Grécia e continuou-se a desenvolver na Europa. Este argumento cultural da visão de mundo europeia é de pouca espiritualidade conectada com o universo de outras culturas.
Este argumento é baseado racialmente, já que outras culturas produziram grandes avanços para a ciência. O método científico é a via de acesso ao método humano de desenvolver tecnologia? O cérebro humano foi e sempre será capaz de atingir o processo científico. Nós não teríamos construído a civilização, as artes e as ciências, sem o processo científico. É bom lembrar que os europeus estavam atrasados em comparação com outras civilizações do mundo antigo em relação ao seu desenvolvimento.
O historiador Teophile Obenga traduziu o papiro de Ahmes (ou Rhind) que continha cálculos matemáticos, descobriu que o método científico é de 1650 a. C. Ahmes detalha a solução de 85 problemas de aritmética, frações, cálculo de áreas, volumes, progressões, repartições proporcionais, regra de três simples, equações lineares, trigonometria básica e geometria. Em outras palavras os africanos tiveram a compreensão do método científico e documentaram suas experiências neste papiro, demonstrando que utilizavam o método científico mais de 1000 anos antes dos gregos irem para o Vale do Nilo, aprenderem o conhecimento científico egípcio e 3500 anos antes de Francis Bacon nascer.
A evidência mais antiga do mundo de antiguidade da matemática vem da caverna de Blombos, na África do Sul e possui 100 mil anos de idade, demonstrando que o homo sapiens que evoluiu na África tinha pensamento complexo e abstrato. Os outros artefatos matemáticos mais antigos também tem origem africana. Pelas evidências materiais, ciência e espiritualidade não contradiz uma a outra. Foi através dos missionários e viajantes no século 18 e 19 explorando e conhecendo o interior do continente africano com motivações comerciais, militares, religiosas, geográficas e científicas, que tiveram contatos com a diversidade científica africana, mas por motivos racistas e geopolíticos de dominação, desqualificaram e ocultaram o quanto puderam estes conhecimentos.
Como uma das consequências desse predomínio do eurocentrismo no ensino da ciência temos a falta de identificação dos estudantes negros com as áreas de ciência e tecnologia. Os estudantes negros brasileiros tendem a não escolher cursos ligados à ciência e tecnologia por pelo menos dois motivos: primeiro, reconhecem de forma pragmática as fragilidades de sua principal fonte de educação formal, a escola pública, cujo ensino de ciências não é satisfatório e, segundo, a falta de um ambiente familiar e social com tradição acadêmica, somado a uma ausência de políticas de popularização da ciência voltadas à conquista desse público, torna as carreiras científicas um objetivo distante para esses estudantes, os quais não conseguem se perceber como futuros cientistas a contribuir para o avanço da sociedade. Para muitos deles, a conquista do ensino fundamental e médio já é um triunfo suficiente.
Por fim, avalio que a reversão desse quadro de exclusão perpassa pela luta do aumento de qualidade da educação básica e a adoção de políticas afirmativas que, por exemplo, concebam projetos de popularização da ciência que levem em consideração as especificidades do público afrodescendente, maioria da população. Em tais projetos, caberia, por exemplo, a exposição da matriz civilizatória dos povos africanos e afrodescendentes para a ciência e tecnologia, ao invés de privilegiar uma “história única” que coloca a ciência em geral como um atributo essencialmente branco, desconsiderando o fato de que, assim como a humanidade, as primeiras civilizações, os primeiros passos da ciência, foram dados no continente africano, ou seja, no Egito e não na Grécia, conforme atestou o próprio “pai da História”, o grego Heródoto, que ao visitar o Egito antigo nos legou duas informações que contrariam os eurocêntricos: os egípcios tiveram a primazia da ciência e eles eram negros. Nesse sentido cito o grande historiador burkinabe, Joseph Ki-Zerbo, “não vejo por que razão os primeiros humanos que inventaram a posição ereta, a palavra, a arte, a religião, o fogo, os primeiros utensílios, os primeiros habitat, as primeiras culturas, deviam ficar fora da história!”
Saliento que, o que está posto não é a dúvida quanto ao papel estratégico ou o valor das contribuições da ciência e tecnologia, mas sim, os danos sociais do emprego do privilégio branco e do sexismo, enquanto instrumentos de interdição à ampliação do número de pessoas a atuarem nessas áreas. Para países como o Brasil 6ª economia mundial que pleiteia se constituir em uma nação competitiva em termos de produção científica e tecnológica, não cabe o desperdício de talentos das mulheres e homens negros em função da manutenção de uma quase que exclusividade de brancos e amarelos na gestão e produção da ciência e tecnologia brasileira.
*Mestre em História pela Universidade de São Paulo; Alumni do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford, Professor de cursos de formação de docentes, Professor da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e escritor do livro Negras e Negros Inventores, Cientistas e Nobéis (no prelo).
Referências
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http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u337682.shtml
e http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u337682.shtml Acessado em 30/5/2013.
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OBENGA, Théophile. L’Egypte Pharaonique Tutrice de la Grece de Thales a Aristote, Ethiopiques nº 52, 1er semestre 1989- vol. 6 n° 1
http://www.egyptologie.be/L_Egypte_Tutrice_de_la_Grece.htm Acesso em 10/10/2005.
PASSONI, Irma Rossetto. Cidadania em C&T: uma mudança de paradigma. Revista Parcerias Estratégicas, n. 20 (Seminários Temáticos para a 3a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação), Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, Brasília, junho de 2005.
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*Mestre em História pela Universidade de São Paulo; Alumni do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford, Professor de cursos de formação de docentes, Professor da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e escritor do livro Negras e Negros Inventores, Cientistas e Nobéis (no prelo).
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