Casa Cor vira ‘Casa Grande Cor’ com novas denúncias de racismo e condições precárias em São Paulo

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Casa Cor vira ‘Casa Grande Cor’ com novas denúncias de racismo e condições precárias em São Paulo

Trabalhadores negros denunciam racismo, segregação e condições precárias nos bastidores da principal mostra de arquitetura das Américas, que passa por São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro.

O apelido não nasceu por acaso. Casa Grande Cor foi como alguns trabalhadores negros passaram a se referir à edição da CASACOR realizada em São Paulo entre 27 de maio e 3 de agosto de 2025. No momento, a mostra está em cartaz em Brasília, de 13 de agosto a 12 de outubro de 2025, na Casa do Candango, e seguirá depois para o Rio de Janeiro, onde será realizada de 9 de setembro a 26 de outubro de 2025, no Fashion Mall, em São Conrado. O contraste entre o luxo, a sofisticação e a criatividade exibidos nas áreas abertas ao público e a forma como recepcionistas negros eram tratados nos bastidores é o que sustenta a escolha do nome.

Por trás do sorriso e da simpatia que encantavam os visitantes, havia um cotidiano marcado por racismo, segregação e condições precárias. Os relatos obtidos pelo Mundo Negro apontam desde ofensas diretas até restrições de acesso a recursos básicos, como água potável e banheiros.

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“Eu mesma vi um arquiteto pedindo para passar álcool no assento onde um visitante negro se sentou por poucos segundos, só para amarrar o cadarço. Assim que ele saiu, ela pediu a ‘higienização’ do lugar”, contou uma recepcionista.

Nem mesmo a repercussão do caso envolvendo o arquiteto Gabriel Rosa, que registrou uma visitante fazendo declarações racistas sobre cotas raciais, foi suficiente para impedir novos episódios. De visitantes a diretores e produtores, as situações narradas se repetem com diferentes protagonistas.

Banheiros segregados e espaços insalubres

Os banheiros destinados aos recepcionistas ficavam afastados e eram descritos como velhos e sujos, sem papel higiênico, sabonete ou tampas nos vasos. Enquanto isso, arquitetos e visitantes utilizavam instalações limpas e abastecidas.

“A sala de staff, que chamo de senzala contemporânea, tinha micro-ondas imundo, sem prato, puffs duros e armários quebrados. Só colocaram detergente para lavar marmitas nos últimos dias e nunca tivemos bucha”, relatou outro funcionário.

Água proibida

Entre os ambientes da mostra havia um espaço patrocinado por uma marca de louças e metais onde o público podia beber água gaseificada à vontade. Recepcionistas contam que foram proibidos de encher suas garrafas no local.

“Nem nisso pensaram na gente. Falávamos o dia todo e precisávamos sair do prédio e ir até a sala de staff para buscar água. Em dias cheios, essa ida e volta levava mais de 10 minutos”, disse um profissional.

Racismo velado e falta de acolhimento

As queixas não se limitam à infraestrutura. Diretores e produtores são apontados como os principais responsáveis por um clima hostil.

“Vários cumprimentavam com beijo os recepcionistas brancos, mas passavam direto pelos pretos, sem sequer dar bom dia. Não é carência, mas é um sinal de quem somos para eles”, afirmou uma trabalhadora.

Outro relato descreve queixas sobre o cabelo, filmagens sem autorização e tarefas humilhantes. “O arquiteto me deu uma escovinha de unha para eu limpar o tapete de todo o ambiente agachada. Era meu primeiro ano e eu tinha medo de ser descredenciada”, contou uma recepcionista.

Medo de represálias

O receio de perder o emprego ou ser vetado de futuras edições aparece em vários relatos.

“No último dia, recusei receber meu certificado porque achei uma palhaçada ver pretos anulados e racismo o tempo todo. A responsável se exaltou e disse ‘vai querer sair daqui assim mesmo?’. Entendi como uma ameaça de não me contratar no ano seguinte”, disse uma das entrevistadas.

“Nosso grande medo era que, até no último dia, qualquer atitude pudesse ser usada para nos descredenciar”, afirmou outra.

Falta de canais de denúncia eficazes

Apesar de a organização afirmar ter implementado um canal de ouvidoria, recepcionistas dizem que o recurso nunca existiu de fato.

“Desde o início, relatei o que acontecia, mas nada foi feito. Só foram me procurar depois que o caso do arquiteto Gabriel ganhou repercussão”, contou uma profissional.

Formas de contratação

A contratação variava entre arquitetos, agências e escritórios, quase sempre via MEI. Essa fragmentação, segundo especialistas, pode dificultar a responsabilização direta, mas não elimina o dever de garantir condições dignas e seguras de trabalho.

O que diz a lei

Para o advogado Hédio Silva, a CASACOR pode ser responsabilizada. “A empresa responde por qualquer violação à integridade psíquica, mental ou moral do prestador de serviço ou empregado. Ainda que não tenha diretamente causado a violência, ela é responsável e tem obrigação de prevenir a ocorrência de violência racial. Este é um caso em que não tenho dúvidas de que vai responder a uma ação indenizatória, porque são várias ofensas seguidas”, afirma.

Hédio lembra que eventos desse porte envolvem múltiplas empresas, mas isso não afasta a responsabilidade solidária de todas pelas condições de trabalho e eventuais práticas discriminatórias.

O posicionamento da CASACOR

Em nota ao Mundo Negro, a CASACOR afirmou que, assim que teve conhecimento da primeira denúncia, adotou providências imediatas, ofereceu suporte ao profissional envolvido e acompanhou a formalização da ocorrência junto às autoridades. A organização diz ter promovido sessões de escuta mediadas por uma psicóloga comportamental e reconhece que as situações relatadas “estão inseridas em um contexto de racismo estrutural que demanda acolhimento contínuo e comprometimento institucional”.

A CASACOR afirma ter criado um canal de ouvidoria, em processo de aprimoramento, e estar em fase de planejamento de novas medidas para ampliar e fortalecer protocolos de prevenção e atendimento a casos de assédio e discriminação. “Nosso compromisso é seguir construindo um ambiente cada vez mais respeitoso, acolhedor e representativo”, diz a nota.

As pessoas ouvidas pela reportagem negaram ter recebido qualquer tipo de acolhimento psicológico dos responsáveis pelo evento.

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