Quando você pensa em mulheres, meu rosto e minha pele vem em sua mente?

Texto: Viviane Elias Moreira

No livro ‘Mulheres Negras Não Deveriam Morrer Exaustas’, de Tabitha Walker, ela cita que a mãe dela havia aprendido sobre contos de fada com a sua avó e Walt Disney, mas ela aprendeu sobre contos de fada com a Oprah. Esta frase me pegou em cheio, porque eu aprendi sobre contos de fada, como mulher brasileira, preta e periférica, com a invisibilidade. 

Na invisibilidade de ser uma menina preta que sempre foi colocada como última na fila da dança na festa junina da escola, com a justificativa da professora que ficaria esteticamente melhor. Na invisibilidade de uma adolescente preta que sempre era a “amiga” que conhecia a mais bonita do colégio e topava este papel para ser aceita. Na invisibilidade da mulher preta que teve que tirar sua foto nas redes sociais em busca de emprego, só para conseguir uma oportunidade de entrevista.

E quando encontrava outras mulheres na minha jornada, acreditava que o meu conto de fadas poderia ser mais acolhedor. O meu conto de fadas não foi completo, porque o que não esperava era a invisibilidade dentro do feminismo. Novamente a invisibilidade bateu de frente comigo, mas através de um novo termo: a sororidade seletiva.

Por muito tempo, a ideia de que todas as mulheres nascem iguais e, portanto, nossas lutas e vivências são construídas pela mesma perspectiva, culminou no termo sororidade, quase como uma prática única, comum e tradicional do feminismo. E, talvez, de fato seja, mas a aplicabilidade é válida quando se é uma mulher não negra. 

Parto, sim, do princípio que o termo sororidade busca tangibilizar que a união faz a força e realmente, há algo potente nisso: é sobre irmandade, companheirismo, respeito e admiração. Mas também é sobre empatia seletiva. Diferente das mulheres não negras, sejam elas ricas ou não, politizadas ou não, mulheres pretas, como eu, minha mãe, minhas sobrinhas, minha irmã e os mais de 28% de mulheres negras no Brasil, sofremos com uma empatia seletiva em todas as camadas da sociedade.

A união de mulheres negras acontece não dentro da sororidade, mas, sim, na dororidade. Enquanto mulheres não negras iam à luta por seus ideais, como o direito ao voto e igualdade salarial, pautas de extrema importância e que ainda ecoam na contemporaneidade, mulheres negras iam para a linha de frente para garantir que os seus corpos continuassem em existência, para garantir o direito de estudar e muitas vezes para garantir o direito de ser tratada como uma pessoa e não objeto ou propriedade. 

Muitas delas, inclusive, morreram no meio do caminho, tendo que escolher entre o arroz e o feijão, pautas que também ecoam na contemporaneidade e por muitas vezes, se não a maioria, são silenciadas. A escritora Vilma Piedade trouxe o conceito de dororidade para destacar e tratar das dores que mulheres negras vivenciam para além da lógica machista. A questão de gênero não é o único marcador social que nos faz acordar, diariamente, em busca de revolução, mudanças e a construção de estratégias para subverter uma lógica propagada para invisibilizar esse corpo e suas especificidades. 

Junto a isso, lidamos com o racismo, com o genocídio em massa da população negra, muitas vezes sendo os nossos pares e filhos o principal alvo. Há um número relevante de mulheres negras que não querem ser mães para mitigar os possíveis riscos que o racismo institucionalizado neste país pode acarretar a suas estruturas familiares. Irmãs: eu respeito a sua decisão, afinal vivemos em um país que a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado. Aqui, neste momento, o silêncio da sororidade é ensurdecedor. 

É justo afirmar que o cenário da sororidade seletiva vem mudando durante os últimos anos. Eu mesmo, tenho a honra de conviver e viver ao lado de mulheres não negras aliadas ao combate contra o racismo, que proporcionam acessibilidade a oportunidades para mim e tantas outras mulheres negras. O que mais gosto destas mulheres que se conscientizaram sobre este tema, é que elas entendem que não estão fazendo um favor, uma boa ação e muito menos uma ação social (o s do ESG) para mulheres pretas. Elas estão agindo para corrigir um padrão que as suas mães, avós e bisavós ajudaram a perpetuar durante tantos e tantos anos em uma sociedade racista. Mas ainda é pouco. Muito pouco. 

Provas que ainda é muito pouco são divulgadas diariamente através da mídia e redes sociais e se tornaram cada dia mais sofisticadas, encontros femininos onde mulheres pretas são convidadas para palestras pontuais sobre o racismo no mês de Novembro e são remuneradas com ecobags ou visibilidade; ações ligadas às influencers pretas que o pagamento  é realizado em produtos como roupas e cosméticos e não em valores compatíveis com influencers não pretas;  destaque em capas de revistas com mulheres pretas, com a premissa que sejam mulheres pretas de pele clara, porque mulheres pretas de pele retinta devem se contentar em ser citadas em matérias menores e ausência completa de mulheres pretas trans, 50+ ou com deficiência de pautas que são relevantes e legítimas para a pluralidade delas. Aqui, novamente, o silêncio da sororidade é ensurdecedor.  

A dororidade é o lugar onde mulheres pretas se reconhecem, se conectam e estruturam estratégias para continuar a lutar e a sua ressignificação em uma sociedade que o tempo todo tenta nos definir em rótulos. Aqui faço um convite: leiam a coluna da Shenia Karlsson, no Site mundo negro. sobre A ‘Síndrome da Sinhá’ e o impacto na saúde mental de mulheres negras que poderá contribuir com a continuidade sobre a reflexão deste texto. 

Nós mulheres pretas não queremos sobreviver, queremos ter o direito a ser reconhecidas dentro das discussões de pautas que nos atravessam na interseccionalidade de gênero e raça. O debate da pauta feminista deveria começar por aqui, pois nossas histórias se cruzam até a página dois, após isso, o enredo é a sororidade seletiva e direitos negados. Mas, será mesmo que ainda há espaço para mulheres pretas continuarem esperando uma jornada que não seja exaustiva?  

Eu, no auge dos meus 40 e poucos anos, estou exausta, minhas semelhantes estão exaustas e meus ancestrais, ainda em vida, também estão. Vejam só, gerações diferentes, mas situações que ainda se repetem. Os contos de fada de mulheres pretas precisam passar por um processo de inclusão na sororidade e diminuição da dororidade, para que a nova geração de meninas pretas tenha a construção dos seus contos de fadas com a Disney. Mas a versão inclusiva que a Disney vem criando com a visibilidade do poder de mulheres diversas na construção do empoderamento feminino inclusivo e sem qualquer tipo de silêncio ensurdecedor.

Finalizando o março, considerado mês da Mulher, questiono: será que essa data, mês é sobre nós, ou para vocês? Aqui fica o meu silêncio ensurdecedor. 

*Viviane Elias Moreira é C-level em uma edtech, conselheira, palestrante, professora de MBA e uma realista esperançosa pela igualdade racial e de gênero.

 

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