“É preciso investir para interromper os ciclos de pobreza”, diz Juliana Kaiser, professora, consultora e palestrante

Por Rodolfo Gomes

Juliana Kaiser é educadora, formada em história da arte.  Desde a infância a sensação de não pertencimento a acompanha. Filha de pais com muita consciência social, que sempre a instruíam sobre as questões raciais.

“Meu pai sempre falava sobre o entorno. Fomos sempre os únicos pretos dos edifícios que morávamos.”

Graças ao esforço dos seus pais, teve a oportunidade de cursar os ensinos fundamental e médio em escola privada. Ao final do ensino médio, entrou em uma grande universidade pública, no Rio de Janeiro, para cursar história da arte. Ali, entendeu que estava em um espaço cujo sistema não estava pronto para lhe receber. Em seu curso, a maior parte dos alunos já tinha viajado o mundo, conhecido os museus pelo mundo a fora. Nas aulas, seus professores falavam de arte erudita, europeia e branca. Tudo de forma hermética para Juliana, que não conhecia de perto nenhuma das referências ensinadas. Foi quando resolveu trancar a universidade, e passar um período na Europa, para conhecer as referências que lhe eram ensinadas.

Durante seu período na Europa, olhava em volta e não via pessoas pretas. Mas foi um período de muito aprendizado, e que permitiu que Juliana conhecesse de perto os conceitos que seriam fundamentais para sua formação, que foi retomada assim que retornou ao Brasil. Já no mestrado, estudando museologia em Portugal, via que os empobrecidos, que assim como no Brasil eram negros, por lá também não ocupavam espaços de poder e conhecimento. Em Chelas, um dos bairros mais perigosos de Portugal, majoritariamente formado pela comunidade africana em Lisboa, estudou e entendeu que o ciclo de exclusão também acontecia por lá. 

“Existe uma barreira invisível a ser transposta. O sistema retroalimentava que pretos nasceram pra trabalhar, e não pra conhecer museus. Essa é a exclusão do povo negro dos espaços de poder, que mesmo gratuitos e existentes no calendário escolar, não são frequentados pelo nosso povo, evitando que eles saibam da importância do conhecimento histórico.” 

Atuou como profissional responsável por relações institucionais de importantes museus e via as pessoas surpresas com sua bagagem internacional, e visitas semestrais à Europa, o que era motivo de estranheza para muitos. Conectava os museus com projetos sociais das mais variadas áreas vulneráveis da cidade. Sua missão era olhar as instituições por dentro e virar a chave da invisibilidade, conectando a extrema pobreza e questões raciais, pensando projetos para os excluídos de espaços estratégicos.

A carreira de Juliana se divide entre o trabalho acadêmico e docente, em grandes universidades, com estudos sobre diversidade racial, e responsabilidade social, palestras e consultorias, pensando estratégias para grandes empresas, ajudando-as a desenvolver o ESG sob a perspectiva social, com o objetivo de melhorar suas práticas. Para além da filantropia, pensando também no lucro, e devolvendo valor para a sociedade.

Na ocasião da implantação da política de cotas no Brasil, Juliana lecionava em uma universidade pública. Convidada por outro professor, estava lá quando os alunos cotistas começaram a chegar, lutando pela não segregação de alunos negros. Nessa época, organizou uma rede de apoio, para mobilizar a estrutura da universidade para evitar o assédio e o racismo.

Juliana, que nunca se contentou com o teste do pescoço, em que se olha em volta e não se acha pessoas negras, sempre lutou pela inclusão em todos os meios dos quais fazia parte. E essas experiências a levaram a migrar dos museus para o mundo corporativo, dando também consultorias para Diversidade, Equidade e Inclusão. Estar na universidade é pensar ação social em espaços estratégicos. Hoje, como professora convidada, aborda os alunos negros no Campus, para orientá-los sobre ocupação dos espaços. 

“A universidade está mais preta, apesar de ainda haver vieses inconscientes. Presencio bancas acadêmicas mais pretas a cada dia. As comissões de heteroidentificação também estão mais fortes, coibindo fraudes e permitindo a afirmação da negritude.”

No mundo corporativo, atuando de forma estratégica em consultorias de ESG para grandes empresas, seu papel é alinhar os stakeholder, e garantir a correta implantação da diversidade, equidade e inclusão nas empresas, uma vez que os números relacionados ao pilar racial ainda estão distantes de uma perspectiva de equidade. Negros são mais de 56% da população e não vemos esse percentual refletido nas corporações. Além de conhecer a fundo os relatórios de sustentabilidade e GRI, apresenta os resultados dos concorrentes, ações e consequências. Traz escolhas para mesa, embasando a negociação através de benchmarking. Seu trabalho consultivo também envolve aumentar a quantidade de pessoas pretas nas empresas, especialmente em cargos estratégicos, não se limitando apenas aos estagiários ou aprendizes.

Desde o início da pandemia, essa distorção tornou-se mais gritante. Antes, nos ambientes físicos, as pessoas negras até eram vistas na recepção, na segurança, na copa, mas com o advento do trabalho remoto, as reuniões por videoconferência escancararam a desigualdade racial existente nos espaços corporativos. 

“Penso no ESG a partir da transparência, governança. Sempre pergunto se meus clientes estão prontos para a equidade racial. “

Escrevendo um livro sobre o empoderamento de mulheres no mundo pós George Floyd, acredita que mudar a realidade econômica das mulheres negras é ter a inclusão em todas as camadas hierárquicas das empresas. Tem estudado o empoderamento econômico para as mulheres negras e as ações efetivas que estão sendo adotadas para que conselhos de administração e demais cargos C-level sejam compostos por pessoas negras e especialmente por mulheres negras.

“Não sou de quebrar vidraças, e sim de jogar xadrez. Vou na linha da paz, e acredito que apresentar projetos robustos de investimentos é mais efetivo do que a militância sem embasamento. Fazer com que as empresas percam dinheiro, não resolve o problema. É preciso investir para interromper os ciclos de pobreza, entregando o mínimo de conforto financeiro, para que os ciclos não se repitam.”

Sobre o futuro, Juliana revela estar muito otimista, mas ressalta que é preciso pressionar o mercado, olhando especialmente para empresas globais, uma vez que os investidores estão tirando o dinheiro do Brasil. 

“Quando a gente pensa que os nossos sobreviveram à travessia do atlântico, vemos o quanto somos resilientes. Precisamos trabalhar a força mental, acreditar na mudança e empoderar as pessoas negras.”

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