Cannes Lions 2024: Única brasileira negra a vencer como diretora de criação conquista mais um Leão

Gabriela Moura, 36, a primeira e única mulher negra brasileira a ser premiada como diretora de criação no Cannes Lions, o “Oscar” da publicidade global, acaba de conquistar um Leão de Bronze em Entretenimento, na edição de 2024. Os vencedores foram revelados nesta segunda-feira, 17 de junho.

O projeto premiado intitulado “A Princesa e a Coroa“, foi lançado em 2023 pela agência Soko, para uma campanha publicitária com a Tiana, do filme “A Princesa e o Sapo“. A primeira princesa negra da Disney soltou o seu cabelo crespo em uma animação curta encantadora, para divulgação de uma linha infantil da Seda. “Queriamos possibilitar que a beleza negra fosse algo naturalizado nas crianças e vivenciado por toda a família”, disse Gabriela, ex-diretora criativa da Soko, em entrevista exclusiva ao Mundo Negro.

Embora seja mais um grande feito na carreira para se orgulhar, Gabriela também compreende que ser a única com este prêmio ainda diz muito sobre uma publicidade composta majoritariamente por homens brancos.

“Quanto mais mulheres negras estiverem à frente de grandes campanhas, mais rica vai ser a comunicação e mais capilarizada serão as mensagens que queremos passar. Porque a famosa frase de Angela Davis dizendo que o sucesso de mulheres negras movimenta toda a estrutura social não é exagero. É o que acontece, literalmente: estamos falando sobre visibilidade, valorização e uma indústria criativa mais inteligente”, destaca.

Atualmente como diretora de conteúdo criativo da agência Talent, Gabriela ganhou o primeiro Leão no ano passado, levando dois bronzes para casa em categorias diferentes.

Leia a entrevista completa abaixo:

1 – Ser a primeira e única diretora de criação negra brasileira a conquistar um Cannes Lions é um grande marco. Qual a sensação de levar um leão por dois anos consecutivos? 

É um orgulho imenso ter a oportunidade de realizar esse feito. Cannes é o prêmio de publicidade mais concorrido do mundo, o nosso Oscar. Cada prêmio desse representa o resultado de uma caminhada longa. Todos os meus cases são fruto de muita pesquisa. Mas se eu sou a única mulher negra a conquistar tal feito, em um país onde mais de 56% da população se declara negra, é porque nossa sociedade ainda falha muito com as mulheres negras. Padecemos de falta de oportunidade e somos constantemente coagidas a ter o mesmo comportamento de homens brancos. Nossa cultura é desvalorizada e nossa história é invisibilizada. Isso resulta em uma indústria que ainda é muito auto referente. Quanto mais mulheres negras estiverem à frente de grandes campanhas, mais rica vai ser a comunicação e mais capilarizada serão as mensagens que queremos passar. Porque a famosa frase de Angela Davis dizendo que o sucesso de mulheres negras movimenta toda a estrutura social não é exagero. É o que acontece, literalmente: estamos falando sobre visibilidade, valorização e uma indústria criativa mais inteligente, ou seja, mais rica culturalmente, com mais referências. Pra mim, diversidade é, também, sobre inteligência. Eu preciso me abrir para fora da minha bolha para pensar melhor e, consequentemente, conseguir desenhar soluções para as várias questões da humanidade.

2 – O projeto que levou o prêmio neste ano, A Princesa e a Coroa, é muito representativo para mulheres negras. Como foi a experiência de trabalhar com o processo criativo de uma princesa negra com o cabelo crespo para a marca? 

Estamos falando de um tema muito familiar para meninas negras, mas pouco abordado publicamente. Então apesar de muitas vezes essa campanha mexer pessoalmente comigo, o desafio maior foi encontrar o denominador comum de toda uma população de forma respeitosa e não invasiva. Não faz parte do meu estilo de trabalho explorar a dor negra para contar nossa história. Apesar de aspectos dolorosos (como bullying, racismo, etc) serem importantes de serem explicitados, eles não podem nunca serem usados como forma de definir pessoas negras. Por isso, o processo criativo partiu do princípio de que todas as pessoas negras de cabelos crespos já sabem dessa dor em comum e, portanto, nosso papel ali era outro. O foco era a fantasia possibilitada pela personagem Tiana, a primeira princesa negra da Disney. Queriamos possibilitar que a beleza negra fosse algo naturalizado nas crianças e vivenciado por toda a família.

3 – Como tem sido o seu reconhecimento profissional no Cannes Lions nos últimos anos? 

A primeira vez que concorri em Cannes foi como redatora do projeto New BIA Responses Against Harassment. O projeto visava debater o assédio sofrido por uma inteligência artificial. Pesquisas apontam que esse problema é comum, porque muitas IAs têm nome e voz feminina, o que leva muitos homens a agirem como agiriam com mulheres reais. Desenvolvemos novas respostas da BIA (a inteligência artificial do Bradesco) para ser contundente contra o assédio e assim realizar, também, uma função educacional. Essa campanha foi finalista em Cannes na categoria Mobile. Mas, a primeira vez que ganhei um leão de Cannes foi no ano passado, mesmo, quando recebi 2 bronzes, um na categoria PR e um na categoria Glass (que tem por finalidade premiar cases com impacto social). O projeto era o Uncomfortable Food, para Stella Artois/Ambev, onde debatemos o machismo na indústria da gastronomia. A ideia nasceu a partir de um problema: a cozinha é um lugar historicamente destinado a mulheres, que tinham como função social – demandada do machismo – servir. Mas, na hora de oferecer reconhecimento para grandes nomes da gastronomia, esse reconhecimento ia todo para chefs homens. Criamos um ecossistema de comunicação para dar créditos às mulheres trabalhadoras dessa área, aumentar sua visibilidade e possibilitar mais acesso à educação para que mais mulheres possam se profissionalizar no mercado.

4 – Como foi receber a notícia do seu primeiro Leão como Diretora Criativa?

Eu recebi essa notícia com um misto de euforia e incredulidade. Pensando em minha própria história, foi fantástico pensar onde eu estava chegando. Eu sou filha de uma mulher negra, ex empregada doméstica, que não teve oportunidades. Quando eu era criança as pessoas diziam que minha mãe deveria me treinar pra eu ser empregada, também. Cannes por tanto tempo parecia tão distante, branca e masculina e, por isso, tão distante. É muito bom ter quebrado esse teto de vidro, mas sei que temos um caminho longo a percorrer até que mulheres negras em Cannes deixe de ser uma novidade e passe a ser parte da cultura da indústria criativa.

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