Texto: Ricardo Corrêa
“A favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”
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Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, no município de Sacramento, Minas Gerais; mulher negra, moradora da favela, catadora de papel e mãe de três filhos. Estudou até o segundo ano do ensino fundamental, mas tornou-se um importante nome na literatura brasileira. A sua história desbancou a concepção comum de que apenas pessoas portadoras de diplomas e títulos acadêmicos são capazes de produzir conhecimentos. Aliás, ao olharmos criticamente ao nosso redor constataremos muito intelectual medíocre que é respeitado, sendo que temos uma parcela considerável de pessoas negras com elementos simbólicos que atestem suas próprias qualidades e formações, mas continuam sendo subjugadas e invisibilizadas por conta do racismo estrutural. Lima Barreto estava correto quando disse que os negros têm a capacidade mental julgadas à priori, e os brancos à posteriori. No entanto, com todas as implicações negativas presentes em sua vida, Carolina de Jesus furou a bolha e demonstrou toda a sua genialidade. Ela conseguiu denunciar a situação dos favelados inseridos neste sistema desumano e excludente, através da sua experiência como moradora.
Em 1958, o repórter Audálio Dantas ao cobrir uma reportagem na favela do Canindé, situada na cidade de São Paulo, conheceu Carolina de Jesus que lhe mostrou o diário que estava escrevendo. Ele ficou impressionado com aquelas narrativas e se prontificou a buscar uma editora para que ela pudesse publicá-lo. A obra “Quarto de despejo: Diário de uma favelada” chegou ao público em 1960. De desconhecida favelada, Carolina de Jesus tornou-se uma escritora admirada no país. O livro foi um sucesso de crítica entre incontáveis estudiosos “O tempo operou profundas mudanças na vida de Carolina, a partir do momento em que os seus escritos – registros do dia – a – dia angustiante da miséria favelada foram impressos em letra de fôrma, num livro que correu mundo, lido, discutido e admirado em treze idiomas”, disse Audálio Dantas.
No diário, Carolina de Jesus narrou o cotidiano vivenciado na favela, e utilizou de uma linguagem simples com significados profundos. Ela abordou temas como a fome, condições precárias de habitação, racismo e machismo, violência doméstica e sexual, educação infantil, maternidade, política, capitalismo, alcoolismo, e tantas outras questões que atravessam e pioram a vida do povo brasileiro. Emocionar-se com a leitura dessa obra é uma condição inescapável.
A fome continua Dra. Carolina!
Eu não consigo falar de Carolina de Jesus sem lembrar-me do passado. Rememoro episódios tristes que passei com a minha família por conta da miséria; naquela época, alimentar-se era exatamente um “espetáculo”. Um desses episódios ocorreu nos anos oitenta. Perto de casa existia um açougue que comercializava sobras dos cortes de carnes: ossos, gorduras, nervos, sebos etc. Era tudo misturado. Quem desconhece a miséria dirá que jamais compraria essas sobras, mas porque não compreenderam que a sobrevivência indigna não oferece muitas opções. Os restos saciaram muitas vezes a fome lá em casa. Num certo dia a minha mãe pediu para que eu fosse comprá-los. Uma das mulheres que estava na fila do açougue ficou curiosa com o meu pedido e perguntou qual era o preço dele, depois concluiu “acho que vou levar um quilo para o meu cachorro”. Eu fiquei destruído por dentro. A minha mãe chorou quando contei a ela.
No ano passado diversas reportagens mostraram as pessoas passando fome, revirando lixos na busca de alimentos, e “filas do osso” se espalhando pelo país. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), em 2022, um pouco mais de trinta e três milhões de pessoas não tinham o que comer. Isso é estarrecedor! E sabemos muito bem que a cor que predomina entre os famintos é a negra. Carolina de Jesus já tinha refletido sobre o retrocesso do mundo nesse quesito fundamental para a sobrevivência humana “Para mim o mundo vez de evoluir está retornando a primitividade. Quem não conhece a fome há de dizer ‘Quem escreve isto é louco’. Mas quem passa fome há de dizer: Muito bem, Carolina. Os generos (sic) alimentícios deve ser ao alcance de todos.”
Carolina de Jesus deixou de morar no quarto de despejo, publicou outros livros, mas não escapou da pobreza. Em 2021 ganhou o título doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Faleceu em 1977.
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