Por Marcelo Zig
Uma criança autista, de 8 anos, foi resgatada ontem, 19/05/2021, por agentes da Polícia Civil do Rio de Janeiro após várias denúncias de cárcere privado. O crime ocorreu na comunidade Gogó da Ema em Belford Roxo e foi cometido pela mãe e avó da criança que foram presas em flagrante. “A criança era mantida em cárcere privado, isolada das demais crianças, sem água, sem alimentação. Foi encontrada suja, mal asseada, sem nenhuma condição, num local totalmente desumano. Na verdade, era um galinheiro que foi adaptado para colocar essa criança em cárcere, separada das demais”, declara o delegado, Alexandre Neto, que acompanhou o caso.
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E o delegado acrescenta, diante das alegações da mãe e avó de que a criança não passava muito tempo presa: “A criança foi encontrada com ferimentos e equimoses de idade diversa, o que revela que essa criança vinha sofrendo maus-tratos há um bom tempo. Caracteriza, com certeza, a síndrome da criança espancada, o que demonstra que não era simplesmente maus-tratos, mas a criança era submetida a um intenso sofrimento físico”. O fato é que, por mais chocante que seja o relato do delito, não se trata de um caso isolado e a sua reincidência continuará ocorrendo enquanto a sociedade não discutir o capacitismo que submete as pessoas com deficiência a crimes como este.
Capacitismo é toda forma de discriminação contra a pessoa com deficiência por causa da deficiência.
Em 20/01/21 foram libertas uma idosa de 83 anos e duas filhas, uma com deficiência intelectual e outra com deficiência física, do cárcere privado que o filho e irmão das vítimas cometiam contra elas no município de Boa Viagem, interior do Ceará.
Em 27/01/21 uma mulher de 64 anos, com deficiência intelectual, foi liberta de um porão de 12 metros onde era mantida em cárcere privado por 12 anos pelo marido na cidade de Sorocaba em São Paulo.
Em 28/02/21 um jovem de 23 anos com deficiência intelectual foi liberto de um quarto sem iluminação e ventilação em que era mantido em cárcere privado pelo pai e a madrasta, na Zona Leste de São Paulo, tendo uma bacia como banheiro.
Em 30/04/21 uma mulher de 33 anos, cadeirante com uma doença degenerativa foi liberta do cárcere privado de 7 meses em que era mantida pela irmã, em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre.
Em 05/05/21 foram libertas duas mulheres com deficiência que estavam em cárcere privado, junto com o sobrinho de 8 anos e a sobrinha de 5 anos, acorrentados pela mãe e irmã das vítimas. Desde sempre, na história da humanidade, o cárcere privado é cometido contra as pessoas com deficiência seja em suas próprias residências ou institucionalizadas em manicômios.
Vale ressaltar que o capacitismo, quando tratado e reduzido aos crimes de maus tratos e cárcere privado, não cessa com a punição das pessoas envolvidas. Por esta razão, nos casos citados, e não citados neste texto, questiona-se: qual será a sorte das pessoas com deficiência, se as pessoas que dizem amá-las estão presas e o Estado e a justiça brasileira não reconhecem a tipificação do capacitismo como crime? O crime de capacitismo equipara-se ao de racismo e prevê pena de um a três anos de reclusão e multa, podendo a reclusão ter o seu período aumentado dependendo das condições em que o crime foi praticado.
A ausência de compreensão da profundidade do crime sofrido pelas pessoas com deficiência delineia estruturalmente a relação capacitista que os órgãos responsáveis e envolvidos estabelecem com as, agora, suas vítimas.
Marcelo Zig é filósofo, escritor, palestrante, servidor público e ativista afrodeficiente. Idealizador do Projeto Mergulho Cidadão – campanha preventiva aos riscos de acidente por mergulho em águas rasas – terceira causa de lesão medular no Brasil, fundador da Comissão de Profissionais com Deficiência da Empresa de Águas e Saneamento do Estado da Bahia – Embasa, fundador do coletivo Quilombo PcD que trabalha a interseccionalidade de raça e deficiência no combate ao atravessamento do racismo e do capacitismo na vida da pessoa preta com deficiência.
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