Cadernos Negros: um documento vivo da resistência literária brasileira

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Cadernos Negros: um documento vivo da resistência literária brasileira
Conceição Evaristo em 'Cadernos Negros'. (Foto: Divulgação)

Por: Rodrigo França

Há obras que não apenas registram a história, criam história. O documentário Cadernos Negros, dirigido pelo mestre Joel Zito Araújo, ilumina uma trajetória que não cabe em prateleiras, porque pulsa nas veias da literatura brasileira. Ao recuperar a gênese e a permanência de uma série que nasceu como gesto de insurgência, o filme nos lembra que a literatura sempre foi debate público, memória coletiva e projeto de país.

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Inspirado nos cadernos de Carolina Maria de Jesus, o primeiro volume de Cadernos Negros surge em 1978, em São Paulo, quando escritoras e escritores negros, organizados com o fervor do período que antecede a redemocratização, afirmam um princípio simples, porém radical: não há literatura brasileira sem a voz negra. A série, publicada anualmente, alterna prosa e poesia, e desde o início encontra no coletivo Quilombhoje um abrigo e um motor, um encontro entre arte e ação cívica. O resultado é uma obra de longa duração, que alcança em 2024 o número 45, marco de persistência e de projeto estético que atravessa gerações.

Diretor Joel Zito Araújo (Foto: Divulgação)

O filme não se limita a narrar datas. Ele nos convida a escutar quem fez e faz essa história. Conceição Evaristo, com sua escrevivência, dobra a linguagem para abrigar memórias e experiências que a literatura oficial insistiu em negar. Cuti, um dos idealizadores dos Cadernos, sustenta o eixo político e poético do projeto, lembrando que publicar não é apenas imprimir, é disputar sentido. Daniel Ramos pontua o vigor de uma criação que se amplia sem perder foco. Oswaldo de Camargo, referência incontornável, traz a espessura histórica de quem testemunhou o antes e o depois, a sombra e o clarão. Esmeralda Ribeiro reforça a arquitetura do Quilombhoje, gesto de continuidade que assegura que novos nomes não cheguem ao acaso, mas por direito. Cada depoimento compõe uma cartografia de afetos, escolhas e responsabilidades que chegam à tela com a dignidade de quem narra a própria história.

A direção de Joel Zito Araújo entende a câmera como dispositivo de memória e de confronto. A montagem abre espaço para a ideia essencial dos Cadernos: literatura é ferramenta de emancipação e diagnóstico do país. O enquadramento, a escuta atenta e o ritmo das vozes preservam o lugar de fala sem transformá-lo em slogan, valorizam a experiência sem diluí-la em generalidades. A cada sequência, o documentário confirma a maturidade de um cineasta cuja obra tem sido central para revelar como o racismo organiza o imaginário brasileiro e como é possível desmontá-lo com rigor e beleza.

Esmeralda Ribeiro (Foto: Divulgação)

Desde 1978, Cadernos Negros publica mais de trezentos autores negros, consolidando um patrimônio literário que afronta a lógica do apagamento. Não é uma antologia ocasional, é um corpo vivo de pensamento e invenção, uma escola rigorosa que ensina a ler o Brasil por dentro. A série afirma que a negritude não é apêndice e não é nicho. É fundamento da cultura nacional. Quando um país tenta definir quem merece ser lido e quem deve ficar na margem, os Cadernos insistem em deslocar a margem, ampliar o centro e desobedecer a geografia do privilégio. Isso é política, é ética e é também uma pedagogia da imaginação.

O documentário torna evidente que a disputa nunca foi apenas por espaço na página. A disputa é pelo modo como o Brasil se percebe. Durante décadas, nossa literatura majoritária preferiu a monocromia do cânone. Cadernos Negros trouxe multiplicidade de idiomas, de cadências, de mundos. Trouxe o cotidiano que vira épico pela sutileza da palavra, trouxe a história que não aceitava mais ser rodapé, trouxe a filosofia que aprende com a rua, com a cozinha, com o terreiro, com a sala de aula, com a fábrica. Essa ampliação de repertório não representa concessão, representa reparação e maturidade cultural.

Osvaldo de Camargo (Foto: Divulgação)

Ao colocar em evidência Conceição Evaristo, Cuti, Daniel Ramos, Oswaldo de Camargo e Esmeralda Ribeiro, entre outras presenças que constroem o projeto, o filme devolve nomes e rostos àquilo que tantas vezes foi reduzido a estatística. A cada página publicada, a cada voz que estreia, a série disputa com serenidade e firmeza a narrativa de um país que ainda convive com as amarras do racismo, herança que insiste em contaminar o mercado editorial, a crítica e o currículo escolar. A obra de Joel Zito não aponta dedos ao acaso, ela organiza evidências e convoca consciência, oferece ao público um mapa para atravessar o ruído e reconhecer o que sempre esteve aqui, pulsando.

É por isso que a relevância de Cadernos Negros ultrapassa o círculo de leitoras e leitores habituais. Trata-se de um acervo indispensável para qualquer biblioteca pública, escolar ou universitária, para qualquer mediadora ou mediador de leitura, para qualquer pessoa que deseja compreender o Brasil com honestidade. A série prova que a literatura não serve apenas para consolar nem para ornamentar. Serve para transformar a imaginação nacional e, com isso, reordenar o possível.

Cuti (Foto: Divulgação)

Todos deveriam ter ciência da existência de Cadernos Negros. Não por obrigação, mas por desejo de realidade. Conhecer a série é encontrar a dignidade de uma tradição que venceu o silêncio com trabalho coletivo, teimosia e excelência estética. É aprender que o talento floresce quando encontra condições de circulação e reconhecimento. É admitir que o futuro da literatura brasileira depende de continuarmos abrindo portas, multiplicando editoras, fortalecendo políticas públicas e defendendo iniciativas que não se curvam à lógica do esquecimento.

O filme de Joel Zito Araújo não encerra uma narrativa, inaugura nova etapa. Ao documentar esse percurso, ele convoca o público a agir. Que bibliotecas comprem os volumes. Que escolas trabalhem os textos. Que universidades revisem seus programas. Que as editoras olhem com seriedade para quem nunca foi convidado a sentar à mesa. Que leitoras e leitores, ao terminar a sessão, busquem os livros, compartilhem os nomes, ampliem o repertório da conversa nacional.

Os Cadernos foram, são e continuarão sendo uma casa de muitas chaves. A cada volume, uma fresta a mais se abre na parede da desigualdade simbólica. A cada autora e a cada autor, um país mais legível se desenha. O documentário compreende e celebra essa obra. E nos oferece a chance de romper, com coragem e lucidez, as amarras que ainda insistem em decidir quem pode ser publicado e lido.

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