
Texto: Hédio Silva Jr.
Dados publicados pela Ouvidoria de Polícia de São Paulo indicam que boletins de crimes raciais cresceram 970%, isto é, quase 1.000% entre 2020 e 2023. Em 2023 foram exatamente 4.700 registros. Já em 2024 o Tribunal de Justiça de São Paulo fixou uma indenização no valor de 20 mil reais para um indivíduo negro obrigado a usar a entrada de serviço de um condomínio de luxo.
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Ocorre que segundo o Código Civil, a responsabilidade civil independe da criminal, sendo que a vítima pode priorizar a ação civil deixando a intervenção criminal para um momento seguinte. Isto é possível porque não existe diferença essencial entre ilícito racial civil e ilícito racial penal. Ambos ofendem o bem jurídico igualdade racial. O ilícito racial/religioso civil é disciplinado em tratados internacionais em vigor ao passo que o crime racial/religioso é previsto em uma série de leis. Aliás, os tribunais compreendem que basta o crime racial ofender o direito de igualdade, não se exigindo consequências mais graves, digamos assim.
Justamente por isso a Convenção Interamericana Contra o Racismo prevê que “Os Estados partes comprometem-se a garantir às vítimas do racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância um tratamento equitativo e não discriminatório, acesso igualitário ao sistema de justiça, processos ágeis e eficazes e reparação justa nos âmbitos civil e criminal, conforme pertinente. (art. 10).
O emprego da conjunção aditiva “e” entre reparação civil e criminal bem como a evidente primazia conferida à primeira deve servir de alerta para que vítimas e advogados(as), sobretudo estes últimos, se deem conta de que “registrar BO” não é tudo o que pode ser feito diante de uma violação de direitos motivada por ilícito racial ou religioso.
E tem mais. Há duas diferenças absolutamente vantajosas para as vítimas quando comparamos as esferas cível e criminal:
•1ª vantagem para a vítima: o sistema probatório na justiça criminal é muito mais rigoroso comparado à justiça cível, havendo casos em que mesmo existindo prova do crime ela é considerada insuficiente para a condenação. Já na esfera cível, a vítima não precisa sequer provar a intenção preconceituosa, a intenção de discriminar; estamos falando da denominada responsabilidade civil objetiva por discriminação racial/religiosa;
• a segunda vantagem da responsabilização civil é que ela pode ser proposta no Juizado Especial Cível (caso a indenização seja estimada em até 60 mil reais) sendo que no 1º Grau não há custas ou risco de condenação em honorários de advogado.
A título de provocação, se consideramos que os aludidos 4.700 BOs poderiam ter sido transformados em ações indenizatórias por ilícito racial (lembrando os 20 mil fixados pelo TJSP em 2024) chegaríamos à cifra de R$ 94 milhões, sendo que R$ 19 milhões seriam destinados a honorários advocatícios.
Uma vez que o crime racial é imprescritível, resolvida a questão na esfera civil, cujo prazo para a ação expira em três anos, parte-se então para a esfera penal.
O nome disso é racionalização dos litígios raciais e religiosos com maiores chances de êxito para as vítimas, geração de renda para a população negra e fortalecimento da advocacia.
Este tema da responsabilidade civil por discriminação racial mereceu especial atenção da Resolução CNJ 598, de 2024, que instituiu o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial”, adotado pelo Conselho Nacional de Justiça em novembro passado.
Trata-se de inovadora ferramenta interpretativa e instrumental técnico a ser observado pelos juízes e juízas brasileiros e que promete avanços significativos na forma pela qual o Judiciário compreende a problemática racial em nosso país.
Atenta à relevância desse assunto, no próximo dia 1º de setembro a OAB Federal, em parceria com o Jusracial, irá lançar um primeiro curso nacional destinado aos mais de um milhão e meio de advogados(as) brasileiros(as) subsidiando-os para a utilização adequada e eficiente do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial”.
Um alento para vítimas, para a advocacia e para a cidadania.
Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP, fundador do Jusracial @drhediosilva
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