“As crianças não brincam de brincar, elas brincam de verdade”, dizia Mario Quintana. Brincar é coisa séria e envolve formação de valores, referências e até caráter quase com a mesma intensidade do que se absorve conhecimento na escola ou da família. Você pode fazer uma branda leitura psicológica de uma criança pela maneira que ela brinca, quais seus critérios para escolher determinado brinquedo e a forma que interage com ele sozinha ou com amigos.
A historiadora e empresária Jaciane Melquiades que apesar de ganhar sua primeira boneca negra apenas na fase adulta, viu na produção de brinquedos não só um filão de negócios, mas uma maneira de ajudar crianças negras a se amarem ao se sentirem representadas. Seu filho Matias, ficou famosos nas Redes Sociais, justamente por exaltar sua felicidade ao se identificar com o boneco Finn, da última versão do Star Wars. No comando, junto com seu marido da “Era uma vez o Mundo”, empresa de brinquedos afro-centrados e personalizados, ela satisfaz seus clientes com bonecas que representam a diversidade da mulher negra, pelas cores de pele e cabelo e abusa dos tecidos afros e turbantes.
Notícias Relacionadas
65% das crianças em situação de trabalho infantil no Brasil são pretas ou pardas, diz IBGE
Segunda criança envenenada na Zona Norte do Rio morre após comer bombom
Nessa entrevista para o site Mundo Negro, Jaciane que também faz parte do coletivo Meninas Black Power, fala sobre brincadeira, maternidade, representatividade e afro-empreendedorismo.
- Mundo Negro: Qual foi seu primeiro contato com bonecas negras? Teve alguma na infância?
Jaciane: A primeira boneca negra que tive foi um presente aos 22 anos. Meu namorado (que hoje é meu marido) fez uma pra mim. Parecia comigo, era de tecido, tinha tranças como as que eu usava na época. Tenho ela guardada.
Quando criança lembro que eu sonhava com a Barbie e tive uma só. Um presente da minha avó. Lembro ainda de como eu passava dias inteiros fingindo ser aquela boneca e vivia com uma toalha na cabeça.
- Como mãe, de que forma os brinquedos afro-centrados surgiram na sua casa e de que forma você acha que eles contribuem para auto-estima do seu filho?
Quando engravidamos aqui em casa, começamos a nos preocupar com as referências que nosso filho teria. Somos educadores e discutimos desde sempre vários aspectos da educação dele. A mudança começou por mim, pelos cabelos e interferiu até no meu trabalho, que foi todo orientado para questões raciais.
Estudo questões raciais desde a universidade e o filho fez com que essas questões fossem materializadas. Inicialmente em brinquedos para ele, e depois, ampliando para comercialização. Percebemos nessa preocupação com ele, um nicho de mercado.
Nosso filho está crescendo com uma imagem muito positiva de si mesmo pois consegue se ver em diversos espaços nas brincadeiras. Criamos até um super-herói no qual ele pudesse se reconhecer, o Super Black Power, que apresenta a história dos Orixás, do Egito e a importância de sabermos nossa história para crescermos fortes.
O Matias está tendo o privilégio de crescer cercado de pessoas negras engajadas, que ocupam lugares de poder, está cercado de espelhos positivos e tem brinquedos que o representa. Quando ele vê na TV, por exemplo, algum programa que não tem crianças negras, ele pergunta se o desenho / programa é racista, bem diferente de quando não temos referências positivas. Quando falta a referência, acabamos pensando em mudar nossos traços, nosso cabelo e tudo o que nos caracteriza. Matias sabe que é lindo e está construindo uma identidade muito forte.
- Menino pode brincar de boneca sim, certo: E de que forma brincar com bonecas negras pode mudar a visão dos meninos sobre as mulheres negras?
Aqui em casa brinquedo é coisa de criança. Bonecas inclusive. Acreditamos que em nossa comunidade precisamos fortalecer todas as pessoas negras. No caso da boneca negra, com as características negras, há uma ampliação do conceito de beleza estética mesmo. Nossas bonecas são muito diferentes umas das outras: são gordas, magras, umas maiores, outras menores, repeitando essa diversidade que nos caracteriza. Esses elementos lúdicos acabam forjando nosso olhar sobre nós mesmos, mas sobre o outro também. Perceber beleza, fofura, numa boneca negra, cuidar de uma boneca negra como se fosse bebê, nos coloca no lugar de humanidade que tanto discutimos. E apresentar todos esses elementos para meninos também colabora para a formação dessa subjetividade positiva no seu olhar sobre a mulher negra.
- Como surgiu a Era uma vez o mundo? E quais foram os pontos altos e baixos até agora?
A “Era uma vez o mundo surgiu” em 2008, como uma forma de complementar renda quando ainda éramos estudantes universitários. Em 2013, quando me envolvi com o trabalho educativo do coletivo Meninas Black Power, direcionamos nosso empenho para materiais afrocentrados. Temos 3 anos focados na elaboração de brinquedos educativos afrocentrados: 3 livros infantis publicados, um deles, o Erê, foi distribuído para toda a rede de escolas infantis da prefeitura do Rio de Janeiro; uma exposição artística que já esteve no Rio e em São Paulo, com bonecas negras representando mulheres importantes na luta antirracista e suas biografias; um livro saindo do forno, o Ibejis, e agora a Dandara, uma boneca de pano colecionável, sustentável e que tem como lema ser toda e qualquer mulher negra e ocupar qualquer espaço em termos profissionais.
2016 foi o ano em que resolvemos nos estruturar de fato como empresa e partimos para 2017 com boas perspectivas na criação de brinquedos representativos. Os pontos baixos acredito que tenham relação somente com investimentos que possibilitam a ampliação da produção.
- Porque você acha que no Brasil, ao contrário dos EUA, não tem bonecas negras e pior ainda tentam vender as morenas, como se fosse tudo igual?
No Brasil temos um movimento de apagamento de nossa História. O racismo aqui opera no apagamento de nossos símbolos. Pardo não tem história pré escravidão, mulato é forjado nesse período escravista e moreno segue nesta mesma linha de apagamento. Esses termos todos são possíveis e aceitos por conta desse apagamento de nossa história, que não é a da escravidão. Nossa História é Africana e mesmo esse resgate é muito dificultado pela forma como fomos trazidos pra cá. Se pensarmos a partir do Brasil, temos Histórias de luta e resistência que nos são negadas na escola e nos espaços de produção de saber, logo, sem heróis ou espelhos positivos desde a infância, como vender bonecas negras?
Vemos reflexo disso na produção dos brinquedos, das bonecas, na forma como a mídia pinça nossos talentos e insere os cachos e a morenice como termos mais “palatáveis e vendáveis”. E falo dessa grande mídia que tem como base estruturante o racismo. O cabelo crespo, a pele retinta, o nariz largo ainda são recusados por essa grande mídia, e ela, infelizmente, ainda informa e forja o “gosto” do Brasileiro.
Atrelado ao trabalho de confecção e venda de brinquedos / bonecas, temos que ampliar o trabalho educativo, que permite a construção de um olhar positivo sobre a negritude. Um trabalho educativo de nós para nós, de recontar nossa história.
- Como você avaliar o black money dentro da comunidade negra brasileiira? Compramos dos nossos?
Ainda não estamos nesse lugar. Estamos nesse movimento de fortalecimento do afro-empreendedorismo e começando a ampliar a consciência da necessidade de fazer a riqueza circular entre nós. Eu sempre bato na tecla da educação: nós, empreendedores, precisamos trazer essa responsabilidade pra nós também, já que um cliente compra não só um produto, mas nos ouve também. Conversar com o cliente e difundir a importância dessa compra, falar sobre nossa produção que é pensada em um público específico, e alertar sobre as possíveis apropriações que venhamos a sofrer. Os grandes empresários já estão nos olhando como mercado consumidor e, com poder de produção, pinçam pessoas representativas para que vendam produtos pra nós. Precisamos estar todos atentos a este movimento. Precisamos sempre fortalecer as razões que tornam importantes a compra dos nossos produtos que são feitos pensados na nossa comunidade, precisamos nos olhar mais como colaboradores que como concorrentes também. Temos que ampliar, e muto, nosso diálogo interno.
Ainda não somos o grupo que detém a riqueza nem o poder de mídia, mas a internet vem possibilitando que criemos nossos próprios conteúdos, estamos ampliando as falas sobre o Black Money e os lugares de poder que ocupamos. Só precisamos de foco pra que seja realmente uma emancipação.
Conheça mais sobre esse projeto incrível:
Era uma vez um mundo
E-mail: eraumavezomundo@gmail.com
Facebook: fb/eraumavezomundo
Notícias Recentes
“Razões Africanas”: documentário sobre influências da diáspora africana no jongo, blues e rumba estreia em novembro
Canal Brasil celebra Mês da Consciência Negra com estreia de longas, documentários e entrevistas exclusivas