A cidade de Itabira (MG) possui um patrimônio que conecta a música mineira à memorável luta pela igualdade racial, reconhecida na trajetória da Banda Euterpe Itabirana. O grupo construiu um repertório de hinos, músicas clássicas, sonatas e adaptações de canções da MPB que há 160 anos emociona seus ouvintes.
Aos 50 anos, Joaquim Teodorino Olímpio, presidente da Banda Euterpe, reforça a importância do grupo para Minas Gerais: “a Euterpe contribuiu enormemente para o desenvolvimento da música mineira e para a cultura de nossa cidade. Há mais de um século estamos tocando nos mais diversos eventos sociais, como encontros cívicos, festas religiosas, comemorações de aniversário e cortejos fúnebres de figuras ilustres. Nosso grupo encanta corações não apenas de Itabira, mas de toda Minas, pois fazemos questão de levar nossa arte para outras cidades”, se orgulha o presidente.
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Para celebrar os 160 anos, a banda iniciou aos festejos em outubro e ainda contará com atividades no mês de novembro. No dia 22, data historicamente escolhida como aniversário em homenagem à padroeira dos músicos, Santa Cecília, Itabira ganhará uma exposição inédita sobre a história da Banda Euterpe Itabirana. A Casa da Banda vai receber visitantes com instrumentos históricos, fotos, partituras e documentos que compõem o acervo da “Mostra Banda Euterpe 160 Anos – Acordes Históricos”.
O projeto também vai contar com o lançamento do livro com o mesmo título, reunindo depoimentos de antigos membros, fotografias, além de textos especialmente produzidos para celebrar os 160 anos.
A história por trás das notas musicais
No ano de 1863, Emílio Soares Gouveia Horta Junior reuniu pela primeira vez a Sociedade Musical Euterpe Itabirana, que no futuro viria a ser chamada popularmente de Banda Euterpe Itabirana. Erudito e influente, professor de português, francês, latim e matemática, Emílio Soares, possuía relações com o imperador Dom. Pedro II, o que lhe deu a oportunidade de se tornar chefe da guarda municipal de Itabira.
No controle da guarda, que tradicionalmente possuía o costume de ter grupos musicais para prestar homenagens às figuras públicas, Emílio Soares deu início às atividades da banda, porém, o conjunto desde sua criação trouxe inovações para cultura de Itabira ao se tornar uma das primeiras sociedades musicais a integrar civis em sua formação. Por mais de um século, o grupo foi formado apenas por homens negros, ex-escravizados ou nascidos livres, que sedimentaram a tradição das bandas através da relação com as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, pois nos festejos religiosos já se realizavam apresentações musicais. A banda foi um importante instrumento de ascensão, defesa da humanidade e cidadania de pessoas negras, que conquistaram o direito ao espaço público através da arte.
Com o passar dos anos, a Euterpe Itabirana se tornou cada vez mais a principal atração nos eventos da cidade. Velórios, aniversários, festas religiosas, do Dia da Independência à comícios eleitorais, o grupo musical ganhou fama pela grandiosidade e talento de seus músicos. A beleza da Banda Euterpe Itabirana encantou fortemente o poeta Carlos Drummond de Andrade, nascido em Itabirana, que inúmeras vezes registrou em crônicas e poesias a presença do grupo musical. A excelência não é para menos, pois até no nome a banda herda prestígio ao homenagear a deusa grega Euterpe, “a doadora dos prazeres”, uma das nove filhas de Zeus e Mnemósine, considerada a musa da poesia lírica e da música.
Tocar na Banda Euterpe Itabirana se tornou uma honra e herança de inúmeras famílias da cidade, que de geração em geração renovam o corpo de músicos do grupo. A banda conta com músicos veteranos que dedicaram anos de suas vidas à Sociedade, além dos novos integrantes que trilham os passos ancestrais de suas famílias. “A entrada de novos membros tem muita influência de algum familiar que um dia também já esteve conosco, que também já foi influenciado por outro familiar um dia e assim vai sendo passada a tradição. Temos um histórico de gerações completas que fazem parte da Euterpe”, lembra o presidente Joaquim Olímpio.
Com sede na Rua Dr. Guerra, 49, conhecida como Rua da Casa da Banda, a sociedade musical é um Patrimônio Imaterial de Itabira e faz parte da história da cidade mantendo viva uma trajetória que reúne 160 anos de tradição.
Uma disputa que inspirou Carlos Drummond de Andrade
A história foi recuperada durante as pesquisas do processo de tombamento da Banda Euterpe como Patrimônio Imaterial de Itabira e relata que, em meados das primeiras décadas do século XX, as bandas locais tinham o costume de criar rivalidades e competições de ego entre si. Isso não foi diferente para Emílio Soares e seus companheiros, que logo começaram a competir com a banda Henrique Dias, fundada pela família Noronha sob forte herança militar.
A banda Henrique Dias era aclamada pelo povo itabirano e sempre foi convidada para tocar em enterros e festividades. Porém, com o falecimento de uma grande personalidade da cidade que tinha laços de amizade com Emílio Soares, o padre monsenhor Felicíssimo, em nome da família do falecido, convidou a banda Euterpe para se apresentar no enterro.
O repertório da Euterpe ainda era jovem e limitado, e como a partitura da música “Libera-me” pedida pela família não fazia parte dele, Emílio Soares engolindo seu orgulho pediu-a emprestada à Banda Henrique Dias, mas para sua surpresa, o seu apelo foi negado. Monsenhor Felicíssimo ofereceu sua ajuda para adquirir a partitura, mas Emílio Soares com o ego recuperado negou, e afirmou com muita certeza e segurança que a Banda Euterpe estaria presente no funeral na manhã do dia seguinte.
No meio da noite, Emílio Soares agiu com rapidez e passou horas dentro da sede da Euterpe compondo ele mesmo a partitura. Por volta das 23h, ele chamou o carcereiro para tocar a clarineta de emergência que convocava a guarda municipal para comparecer ao local. Os guardas, que eram, na verdade, membros da banda, surgiram. Emílio então explicou para eles que não havia nenhuma emergência, pois o alarme foi soado para chamá-los para ensaiar a peça “Libera-me”, que ele havia composto às pressas. No dia seguinte, a peça composta com tempo recorde pelo fundador da Banda Euterpe foi apresentada no velório e foi aclamada. Esse acontecimento foi registrado no poema Criação de Carlos Drummond de Andrade que pode ser lido aqui.
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