
Recentemente, assisti a uma entrevista de Taís Araújo sobre sua personagem Raquel, da novela Vale Tudo. Não acompanho o folhetim, mas a internet não me permite ignorar seus desdobramentos. A entrevista foi um gatilho disparado no meu estômago. A firmeza indignada, embalada pela elegância educada de Taís, me fez investigar o que havia por trás daquela fala.
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Na linha do tempo que encontrei, Raquel teve um buffet de festas, venceu um reality de culinária, atraiu investidores — mas bastou uma sabotagem e a saída da sócia majoritária para que fosse empurrada de volta à praia, vendendo sanduíches ao sol. Note: não foi para um restaurante renomado como subchefe, não abriu um empreendimento menor, tampouco explorou sua popularidade para ensinar receitas no Instagram. A autora decidiu colocá-la novamente na areia, com o tabuleiro à frente das mulheres brancas e ricas.
Esse enredo me atingiu porque despertou lembranças recentes. Depois de dez anos atuando em Recursos Humanos de grandes empresas, em um momento de crescimento inédito nos resultados de clima organizacional, recebi um feedback disfarçado de elogio:
— “Você tem uma voz tão poderosa, um dom para comunicar que emociona. Será mesmo que seu lugar é no mundo corporativo? Eu sinto que a Globo está perdendo um talento.”
Respirei fundo e respondi:
— “Você acha que essa sugestão faz sentido diante dos resultados que alcançamos com as iniciativas que liderei?”
O sorriso que encerrou a conversa não apagou o que veio depois. Eu saí dali desestabilizada, amedrontada. Amigos tentaram me convencer de que era exagero meu. Mas eu sabia. A partir daquele dia, toda vez que me posicionei de forma estratégica, alguém questionava se eu não deveria me dedicar apenas às palestras. O recado era claro: meu lugar não era dentro da empresa.
Esse relato pessoal se conecta com um movimento maior e mais cruel. O mercado está promovendo uma limpeza silenciosa. Em 2020, mulheres negras foram promovidas, disputadas, celebradas como símbolos de diversidade. Cinco anos depois, em 2025, sobrevivemos a uma primavera curta. Agora, uma a uma, executivas negras são afastadas em reestruturações “top down”, acompanhadas da frase padronizada: “Você é incrível, mas não temos outro espaço para você.”
Os cargos que nos deram visibilidade tinham começo e fim em si mesmos. No meu círculo pessoal, cinco executivas negras — todas brilhantes, que prefiro preservar em anonimato — foram “incentivadas” a migrar para a consultoria ou para conselhos administrativos. O curioso é que suas antigas posições simplesmente deixaram de existir ou foram rebaixadas e preenchidas por pessoas brancas.
Na novela, tia Celina não hesitou em retirar o investimento de Raquel para não contrariar a sobrinha herdeira. No fundo, é o mesmo pacto que a novela escancarou. A branquitude corporativa nunca hesitou em aplaudir nossas palestras ou consumir nossos discursos em eventos. Mas quando se trata de nos manter na sala de decisões, acessando as mesmas informações e provando ter igual — ou maior — competência, o jogo muda. Querem nos ouvir, não nos dividir o poder.
O gatilho que me despertou é a sequência de empurrões que recebemos para entreter, inspirar e acalmar consciências, enquanto nos retiram da mesa de comando. É a lógica que insiste em tratar competência como se fosse privilégio hereditário: “vocês falam bonito, mas os negócios são conosco”. E quando, ainda assim, conseguimos provar o contrário, eles dão um jeito de nos exilar.
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