Todos os dias em que um negro entra nas melhores universidades do país são motivo de celebração. É motivo de orgulho para a família negra, para os militantes anônimos do movimento negro e de aliados antirracistas.
Isso não quer dizer que não devemos nos preocupar com o futuro das ações afirmativas no Brasil. Muitos conservadores que trabalham para acabar com os avanços da comunidade negra foram eleitos nas eleições de 2024.
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Nos EUA observamos um recuo na presença de negros nas universidades em razão de decisões do Supremo Tribunal americano ter um perfil conservador. No Brasil um exemplo de retrocesso foi a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 09, que retirou direitos da população negra, diminuindo o valor de acesso a recursos do Fundo Eleitoral, tendo como consequência resultados modestos, mas importantes, no pleito eleitoral de 2024.
Em 2020, decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) obrigou os partidos a dividirem seu bilionário fundo eleitoral e seu tempo de propaganda de maneira proporcional ao número de candidatos negros e brancos. Na disputa de 2022, por exemplo, pretos e pardos deveriam ter recebido 50% de R$ 5 bilhões. Mas a determinação foi descumprida pela maioria dos partidos políticos, com exceção do Partido Novo e do PSOL, que se articularam para aprovar a chamada PEC da Anistia em agosto deste ano, em um plenário esvaziado. O texto que acabou sendo votado reduziu as cotas financeiras para negros para 30%, percentual já válido nas eleições deste ano.Também perdoou os débitos dos partidos que não cumpriram o valor mínimo nas eleições passadas e determinou que esses recursos sejam investidos em candidaturas de negros nas quatro eleições a serem realizadas a partir de 2026.
O texto final da PEC acabou não tratando do caso das mulheres, portanto permanece a determinação de que elas devem ser 30% das candidatas e receber os recursos de campanha de maneira proporcional à sua presença. A ação afirmativa é uma política social que tem como uma das finalidades a diminuição das desigualdades históricas existentes entre homens e mulheres, entre negros e brancos, principalmente no acesso educacional, nas relações de trabalho e nas políticas socioeconômicas.
Nestes últimos 40 anos de discussão e implementação de ações afirmativas no país, fomos testemunhas de muitas vitórias em situações muito difíceis, mas com muita engenhosidade conseguimos avançar e criamos um modelo de ação afirmativa brasileira. Muito diferente do que tem se aplicado em outros países.
Quando afirmo que nós construímos um modelo de ação afirmativa brasileira, chamo a atenção do empenho de professores, intelectuais e ativistas que constituíram centenas de comissões e grupos de trabalho para elaboração de estratégias para implementação de cotas para negros no Brasil. Um destaque foi a implementação das comissões de heteroidentificação, que fazem leitura social. Não é uma análise biológica nem genética. A avaliação é sobre a pessoa ser lida como negra e tratada na sociedade de forma desigual por isso.
Nessa caminhada de décadas, encontramos adversários e inimigos, que procuram fraudar, que tentam ingressar em cursos universitários, como os de medicina ou de Direito, utilizando todo tipo de subterfúgio para burlar as comissões de heteroidentificação. Há quem minta para obter o acesso a cotas até mesmo em entidades como OAB, e no acesso a recursos do Fundo Eleitoral.
O racismo institucional também se concretiza em ações individuais de servidores (as) que particularmente discordam da política de cotas étnico-raciais e, por isso, não a implementam em seus setores, mediante estratégias que impossibilitam a efetiva participação de negros por meio de cotas.
O relatório intitulado “A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”, é uma pesquisa que aborda as cotas para negros nos Serviço Público Federal é resultado de um esforço conjunto de pesquisadoras e pesquisadores, em colaboração com o Movimento Negro Unificado (MNU). Foram analisadas 61 instituições, principalmente no âmbito das Instituições Federais de Ensino, e examinados cerca de 10 mil editais de processos de seleção publicados entre junho de 2014 e dezembro de 2022.
O relatório aponta para uma série de mecanismos criados pelas instituições para evitar e dificultar a implementação efetiva da Lei de Cotas Raciais. De fato, dos mais de 46 mil cargos abertos nesse período, quase 10 mil não foram reservados nem preenchidos por candidatos negros. Com o fracionamento dos cargos, a falta de publicidade das normas, as restrições injustificadas a pessoas elegíveis, entre outras práticas que foram documentadas no relatório e encontradas na pesquisa, ficou evidente que o não cumprimento da lei não se deve à falta de qualificação das pessoas candidatas, mas sim a diversas estratégias adotadas pelas instituições.
A instituição pode até acreditar que a sua conduta não estaria prejudicando os candidatos, mas ao definir regras no concurso com o discurso vazio de meritocracia está boicotando o acesso de negros e negras, em especial nos concursos de carreira jurídica. É um prejuízo irreversível. Este tipo de ação institucionaliza e promove a manutenção do racismo institucional.
É um prejuízo irreversível. Este tipo de ação institucionaliza e promove a manutenção do racismo institucional. Devemos celebrar a entrada de nossos jovens nas melhores universidades do país, um passo gigantesco sonhado por pessoas como Eduardo de Oliveira e Oliveira, Abdias do Nascimento, Antonieta de Barros, Maria Beatriz Nascimento, Rev. Antonio Olímpio Santana, Padre Benedito Batista de Jesus Laurindo, Márcio Damazio, Antônio Aparecido da Silva (Padre Toninho), Dra. Iracema de Almeida, Ari Candido, Luiza Bairros, Hamilton Cardoso, Esmeraldo Tarquínio e tantos militantes.
Fonte: https://observatorioopara.com.br/blog/post-2/