O espetáculo “Jorge pra sempre Verão”, dedicado a contar a história de Jorge Lafond encerrou as apresentações no domingo (24). Com grande sucesso, o público pôde assistir a atriz Aretha Sadick interpretar a Verão Verão, ao lado de Alexandre Mitre como Jorge.
Em entrevista exclusiva ao MUNDO NEGRO em mais um especial Julho das Pretas, Aretha falou sobre a experiência na estreia e ao longo do espetáculo, sobre a transfobia na comunidade negra, relação com a família, cuidados com a beleza e a saúde mental.
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“A estreia foi gostosa porque a gente trouxe os amores e os amigos por perto. Nós tivemos uma ótima acolhida. As pessoas vinham com uma curiosidade de “o que vão falar sobre o Lafond e sobre a Vera que a gente ainda não sabe?”. Então pra mim é um prazer poder alçar a Vera a esse lugar de entidade e de potência com muitas camadas que a televisão e o período histórico que o Jorge viveu não permitiu”, disse a artista.
1) O que você sentiu na estreia do espetáculo “Jorge pra sempre Verão”, ao interpretar Lafond publicamente pela primeira vez? Como foi para você e como foi a recepção do público?
Uma estreia é sempre uma estreia, né? (risos). A gente fez um ensaio aberto em São Paulo e eu preferi que o acaso trabalhasse, não divulguei massivamente porque eu acho que a gente ainda tinha uma expectativa muito grande do público de como seria esse trabalho. Então preferi deixar que o universo trabalhasse, quem tivesse lá pra assistir, que fosse de coração aberto, sem tanta expectativa. Por mim também, por nós, estávamos ali fazendo parte do processo, de uma generosidade com a gente mesma também. E a estreia no Rio, teve um dia que eu fiquei mais ansiosa. Eu já trabalho em cena há muito tempo, então eu aprendi a administrar a minha ansiedade, não deixar que ela tomasse conta de mim, embora ela esteja presente. E eu gosto disso também, esse frio de ‘vai abrir a cortina’, ‘vai acender a luz’, ‘o jogo começou’, essa sensação. A gente estreou na sexta. Na quinta-feira, eu senti mais instabilidade, fiquei mais ansiosa. Pude encontrar o meu namorado que foi bem generoso comigo, no sentido de estar ali. A gente foi pra praia, passou o dia juntos e dormimos juntos. Esse acolhimento a partir do amor foi bem simbólico e importante pra mim. Ter um acolhimento pra dizer está tudo bem, você vai arrasar.
Na estreia eu já estava animada, estava excitada. Eu queria apresentar, mostrar, o trabalho estava lindo. O cenário, a iluminação chiquérrima. Nós três felizes juntos ali, a equipe toda estava lá. Então eu me senti pronta pra começar a brincadeira. Eu interpreto Lafond, da mesma forma que eu interpreto Vera. Embora a gente denomina que eu seja a Vera e o Alê, o Jorge, mas nós somos a mesma pessoa. Eu estou em você, assim como você está em mim, que é inclusive um trecho do texto do espetáculo. A estreia foi gostosa porque a gente trouxe os amores e os amigos por perto. Nós tivemos uma ótima acolhida. As pessoas vinham com uma curiosidade de “o que vão falar sobre o Lafond e sobre a Vera que a gente ainda não sabe?”. Então pra mim é um prazer poder alçar a Vera a esse lugar de entidade e de potência com muitas camadas que a televisão e o período histórico que o Jorge viveu não permitiu.
2) O Brasil é um país transfóbico, mas quando fazemos o recorte de raça, como você sente o acolhimento, ou falta dele dentro da comunidade negra?
A transfobia infelizmente faz parte da construção histórica do nosso país, muito por conta de um machismo, um feminicídio, tudo aquilo que está ligado ao feminino, socialmente tido e visto como algo ruim, pejorativo e que deve ser eliminado, como sinal de fraqueza. Dentro da construção de raça, porque raça vai ditar gênero no nosso país e no mundo, mas principalmente no Brasil, como a construção racial do nosso país vem pra menosprezar a masculinidade negra, o homem negro, acabar com a sua autoestima, com a sua força, com a sua potência, com a sua inteligência, com as suas estratégias. Então quando o homem negro cisgênero, ele é trazido numa sociedade que diz que tudo aquilo que é feminino é ruim, esse homem que já tem uma autoestima rebaixada, ele não quer se aproximar de nada disso, e aí infelizmente a gente vê essa construção social dentro da comunidade negra, o próprio Jorge falava isso, que ele não era nem aceito na comunidade negra por ser afeminado e nem na comunidade gay branca por ser uma bicha preta e também afeminada, declaradamente homossexual. Eu vivi isso na minha trajetória, muito sem entender o porque durante um bom tempo, até o momento que eu entendi como as coisas aconteciam de alguma forma e me coloco, me posiciono socialmente no meu direito de poder viver a minha feminilidade.
As mães pretas vão tentar proteger, a gente sabe disso. Os filhos, pretos, cisgêneros, nascidos e designados como homens, tentando protegê-los de todo mal e de toda angústia socialmente falando, minha mãe fez isso também como ela pôde. Na realidade, em Duque de Caxias, lá em 1989, ela foi tentando me proteger e tentando me encaixar ali dentro de uma lógica que ela conhecia e dentro do que ela sabia, então hoje, eu vejo que tem um esforço maior da comunidade negra de acolher pessoas trans. As bichas pretas afeminadas também, as mulheres lésbicas e a inúmera pluralidade de expressão de gênero, identidade de gênero e sexualidade da comunidade negra. Embora a transfobia ainda que recebemos, nós mulheres trans e travestis, por homens cisgêneros pretos e mulheres pretas e cisgêneras também, ainda existe, quando veem a nossa força e a nossa potência, rapidamente tentam nos encaixar dentro daquilo que é frágil e dentro daquilo que é menor, dentro da lógica da nossa sociedade racista. Então a comunidade negra ainda precisa avançar bastante também, entendendo inclusive a parte da perspectiva espiritual, dos terreiros em que a multiplicidade é uma vivência dos próprios orixás.
3) Como foi para você abraçar sua feminilidade do ponto de vista da relação com a sua família? E o que você diria para mulheres que não são apoiadas em seus lares, sobretudo as mais jovens?
Eu precisei me afastar um pouco deles pra poder me entender, me fazer e me construir. Foi um processo dolorido, mas um pouco dolorido. Durante um bom tempo a minha mãe não me entendia, mas ela sempre deixava nítido o quanto ela me amava e que ela estaria ali pra mim, como sempre esteve, mas sofria pelo meu distanciamento e ao mesmo tempo precisei me distanciar pra eu me construir, que foi importante. Então hoje, quando eu retorno conquistando ainda a força necessária pra voltar pra eles, pra minha família, eles me veem mais, cada vez mais como eu sou e quem eu sou. Ela foi assistir o espetáculo, me fez uma surpresa porque ela disse que talvez iria, mas não confirmou. Então quando eu estava no camarim arrumando e a produtora falou que minha mãe estava lá e eu desabei, fui aos prantos. Há muito tempo ela não me via em cena, ela é a única que me acompanha. Meu pai raramente vai, a minha irmã também já foi algumas vezes, mas há muitos anos atrás. Hoje em dia ela tem um distanciamento, tudo por conta da religião que ela segue. Mas pra mim , ter a minha mãe, foi exatamente o que eu precisava. Foi um desafio porque em muitos momentos eu pensei “é a minha oportunidade de falar”, a partir das artes, falar pra ela coisas que eu nunca disse. Hoje, entendendo o momento histórico, como pessoas pretas foram construídas socialmente a sua autoestima, na autoestima financeira, nas conquistas e não conquistas, eu consigo olhar pra minha família e consigo me entender e consigo entendê-los também, entender as dificuldades que eles tiveram também nos seus processos. Então é um processo de cura que tem sido feito constantemente.
4) Quais cuidados pessoais você tem para manter essa beleza toda? E como você cuida da saúde mental para poder exercer a sua arte?
Hoje em dia eu me cuido muito mais do que eu já me cuidei. A transição também me tornou mais vaidosa. Me aproximar também dos meus ancestrais, na espiritualidade dos meus orixás, entender como eles estão próximos a mim e me fez também cuidar mais do meu corpo, do meu templo. Então eu uso alguns produtinhos para hidratação, pra dormir, pra tirar manchas, bebo bastante água. Uma vez eu fui maquiada por uma maquiadora e ela falou “essa pele é pele de quem bebe água”, nunca me esqueci dessa informação. Então eu sempre penso ‘vou beber água pra manter essa pele hidratada’. Eu nadei, hoje em dia eu não estou nadando mais, mas é o único exercício que eu gosto de verdade como cuidado do corpo. Dança afro eu também já fiz, dei uma pausa, mas sempre que possível eu faço também. Em relação à espiritualidade, os cuidados com a saúde mental, é a parte da espiritualidade, o autoconhecimento. Eu sou muito cabeçuda, então estou sempre pensando em mim, sobre mim, como eu posso melhorar, como me conhecer mais, adentrar em territórios que eu ainda não adentrei, dialogar, conversar, enfrentar monstros que eu ainda não enfrentei. Me valho também das tecnologias ancestrais de cura e de cuidado a partir da minha casa, do meu ilê em Salvador e o meu pai que cuida muito bem de mim, terapia que vem me acompanhando aí durante alguns bons anos e me ajudando a me observar cada vez mais e amar. Acredite você, porque um bom amor, um bom relacionamento, ele exige um autoconhecimento constante. Então tenho amado e tenho tentado amar melhor, a partir de me conhecer melhor, de enfrentar os meus monstros. Me divirto, me encontro com as amigas, bebo, que eu gosto de uma cervejinha, que eu também me permito relaxar, me permito dormir, me permito descansar, como maneira de cuidado da minha saúde mental.
5) Você é uma artista múltipla, mas de tudo o que você faz, o que você se vê fazendo para o resto da vida?
Eu me tornei uma artista múltipla. É uma realidade de muitas de nós. Para se manter artista no Brasil, a gente vai precisando fazer outras coisas, mesmo dentro do campo das artes. E eu gosto bastante, fez parte da minha formação empírica, porém eu vou dizer que ser atriz, estar no palco, é quando e como eu me completo, eu me vejo completa, eu me vejo inteira, me vejo podendo expressar todas as minhas potencialidades, todas mesmo. Eu me divirto, eu gosto do jogo, eu gosto da experiência do presente. Porque se você não sabe o que pode acontecer, embora tenha ali uma redoma de certo controle, as coisas foram ensaiadas, preparadas e tudo mais, mas é ali, no momento presente, que a coisa acontece. Então sendo atriz é como eu me vejo completa e tenho tentado cada vez mais nos últimos anos direcionar a minha carreira para esse lugar.
6) Você acha que a presença da Linn da Quebrada na televisão impactou as conversas sobre mulheres trans no Brasil, no sentido de humanização e naturalização em algumas coisas?
Com certeza. Uma de nós nunca é apenas uma. Nós somos várias, somos uma legião. E mais do que a gente se representar a gente se apresenta. Estamos aqui, somos, vivemos. É óbvio que com avanço sempre vai ter as pessoas que querem ficar puxando a corda pra trás, querendo manter as coisas como já foram ou como elas acreditam que deveriam ser, mas isso possibilita muita humanização, sempre mando vídeos não só da Linn, mas de algumas amigas que eu acompanho e que eu acredito na forma como elas conduzem a própria vida e mando pra minha mãe como uma referência. Percebo que o passo de formiguinha tem ajudado muito no processo dela e isso ajuda também no processo de muitas pessoas. Porque quando a gente é artista e nas proporções que a gente vai alçando e alcançando, a gente vai se comunicando com pessoas em profundidades que a gente nem imagina e isso é o mais maravilhoso. Tem que ser feito com cuidado, com responsabilidade. Então acredito que assim como a Vera, criar representação de uma travesti com os estereótipos, preconceitos, contradições que eram possíveis na época é como a representação do Brasil, a Vera só podia ser e agir daquela maneira porque o Brasil era daquela maneira. Então se a Linn, se nós, se eu, se muitas de nós estamos em outros lugares, é porque de alguma forma, mesmo que lentamente, o Brasil também tem mudado. E com essa mudança, vem o avanço aí de uma repressão também porque a gente precisa ficar atenta.