
Ana Paula Xongani, uma voz fundamental que une empreendedorismo e ativismo, compartilha reflexões potentes sobre a trajetória da personagem Raquel, da novela ‘Vale Tudo’, pensando no impacto da narrativa midiática para mulheres negras, além da importância de acesso a crédito e a urgência de políticas que favoreçam o crescimento de pequenos negócios.
Apesar de Xongani perceber a similaridade de Raquel com muitas empreendedoras do Brasil, ela tem um duplo sentimento em relação à personagem, pois a novela deveria trazer uma outra narrativa. “O papel da Raquel se distancia da ideia desse imaginário positivo que a gente quer, de nos trazer luz, de nos trazer expectativa, de nos trazer boas experiências, inclusive de nos trazer cases de sucesso”, diz a empreendedora e comunicadora, em entrevista à editora-chefe do site Mundo Negro, Silvia Nascimento.
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Ela também fala sobre sua própria jornada à frente do Ateliê Xongani e da empresa de comunicação APX, revelando como o aprendizado adquirido no primeiro empreendimento ajudou a construir um segundo negócio mais sólido e estratégico. Além de mentorias, Ana Paula considera fundamental que mulheres negras tenham acesso direto a investimentos, para que possam ousar, inovar e até errar.
“Eu tenho certeza que o acesso ao dinheiro faria com que a gente acertasse melhor e errasse com mais segurança porque empreender também precisa ser sobre a possibilidade de errar. Porque quando a gente fala sobre investimento, a gente está falando sobre riscos, e riscos precisam ser considerados”, pontua, ao destacar a importância do financiamento direto dos órgãos públicos e privados, além do apoio da sociedade civil.
Leia a entrevista completa abaixo:

MN: Ana, enquanto empreendedora no Brasil, quais reflexões o papel da Raquel de ‘Vale Tudo’ tem te despertado?
Ana Paula: Eu tenho um duplo sentimento pelo papel da Raquel, porque nesses diálogos que eu tenho com as minhas seguidoras, a gente entendeu juntas que a dramaturgia, o papel da TV, o papel da novela é criar imaginários, principalmente imaginários positivos para mulheres negras, para empreendedoras negras, sendo que a gente é a maioria nesse país, e que o papel da Raquel, ele se distancia da ideia desse imaginário positivo que a gente quer, de nos trazer luz, de nos trazer expectativa, de nos trazer boas experiências, inclusive de nos trazer cases de sucesso, de como essa mulher empreende. Que atende no Brasil e consegue ter sucesso, enfim, então esse é um primeiro sentimento.
Ao mesmo tempo, eu vejo muita similaridade do papel da Raquel com muitas empreendedoras do Brasil. Então, tanto a falta de acesso a crédito e a isso se tornar muito vulnerável, quanto esse lugar da confiança, de confiar nas pessoas e, de repente, as pessoas não serem tão confiáveis assim, quanto também a resiliência. O empreendedorismo exige no Brasil, por conta da falta de estrutura, uma resiliência muito grande. Então, acho que isso coincide com o papel da Raquel em Vale Tudo.
Também não posso deixar de dizer que fiquei muito emocionada. Eu fiquei, sim, emocionada com aquela cena onde ela fala: “Se eu cair 100 vezes, eu vou me levantar 101 vezes”. Eu me reconheço nessa fala, ao mesmo tempo que tem hora que eu não aguento mais. Ela falando: “vamos embora, é isso aí, vamos para frente”. Porque eu acho que esse lugar, dessa energia eterna, dessa positividade constante, empregada às mulheres negras que não podem desmurecer, também é muito problemático. Então é isso, eu tenho um sentimento duplo por essa personagem, ambíguo mesmo. E tô aceitando e acolhendo esses dois sentimentos complexos sobre a personagem.

MN: Como foi a sua jornada de empreendedora para lidar com as finanças e a parte jurídica?
Ana Paula: Eu considero que eu tive duas jornadas. Eu tenho duas empresas. No Ateliê Xongani foi bastante inocente. Foi bastante inocente, fazendo com muito pouco. A gente no Ateliê Xongani nunca teve acesso a crédito. A gente nunca conseguiu nem dos programas federais, nem dos programas divulgados. Então a gente sempre investiu com recurso próprio. O que eu tenho certeza que dificultou essa jornada. Então no Ateliê Xongani era tudo muito primário. Primário não sei se é a palavra, né, mas artesanal, essa parte financeira e jurídica. Mas aí com o passar do tempo no Ateliê Xongani, eu fui aprendendo com muito estudo, mentorias importantes de consultores financeiros, mentoria de instituições como o Sebrae, estudo no Senac, enfim a gente mergulhou bastante nessa parte de estudo das finanças e da parte jurídica. Depois de um tempo, a gente tinha inclusive apoio jurídico.
Quando eu fui começar a minha segunda empresa que é a empresa de comunicação APX, eu já tinha um background muito maior da Ana Paula Xongani, então eu entendo que eu comecei muito mais madura, sabendo fazer uma gestão muito melhor e já entendendo desde muito cedo que algumas funções eu poderia contratar. Porque eu já parto de outro lugar. Eu sempre falo isso, que o Ateliê Xongani gerou autonomia para que a Ana Paula Xongani empreendesse de um outro lugar. Então, como eu estava empreendendo de outro lugar, eu não sabia que eu podia contratar parceiros e pagar parceiros para que isso acontecesse. Então não é à toa que hoje a APX tem 10 assessorias para apoiar, inclusive a assessoria jurídica, assessoria de finanças, assessoria de investimento. Enfim, então eu parto de um outro lugar, e é por isso que a gente tem resultados tão positivos, e não só, mas também a gente tem resultados perenes, a gente é sólido nesse mercado, graças a esse conhecimento jurídico de finanças.
MN: Quais são os maiores desafios para as mulheres negras que empreendem no país?
Ana Paula: Acesso a crédito, eu acho que isso é muito importante. Eu acho que a quebra desse teto entre o empreendedorismo e o empresariado. Até o nome eu venho questionando ultimamente. Por que as mulheres negras são empreendedoras e os homens brancos são empresários, startupers, enfim, outros nomes? Então eu acho que quebrar esse teto, entender o empreendedorismo como um primeiro passo, se não como um passo fadado e eterno, eu acho que é um desafio muito grande para nós mulheres negras que empreendemos aqui.
Tem uma outra coisa, aprofundando um pouco mais, que são os impostos, né. Quando você tenta dar um pequeno passo enquanto empreendedora no Brasil, principalmente quando você tem MEI, os impostos são muito caros, iguais a grandes empresas. Os encargos são muito caros. Então muitas vezes a gente fica travado nesse crescimento por conta disso. Deveria ter políticas que acompanhassem inclusive o limite, o faturamento dessas microempresas. Isso não acontece no Brasil e também eu acho que um desafio agora prático, da vida prática da empreendedora, é que quando você empreende você fica muito longe do que você sabe fazer. Um exemplo: se você é uma grande confeiteira, a última coisa que você vai fazer é confeitar bolos e isso é muito ruim. Emocionalmente é muito ruim, financeiramente é muito ruim, estruturalmente é muito ruim, porque a gente fica longe da nossa principal potência que a gente tem que dar conta de tudo, das potências, das fraquezas. Então isso é um problema constante na vida prática das empreendedoras do Brasil.

MN: Na sua opinião, o que hoje é mais urgente para impulsionar os negócios liderados por mulheres negras: mais mentorias ou mais investimento financeiro direto?
Ana Paula: Se for para escolher entre os dois, eu acho que mais investimento direto porque, pensando de modo geral, as empreendedoras, a gente precisa o tempo todo se qualificar na questão financeira, mas tem muitas empreendedores que estão prontas para liderar e para gerir grandes investimentos. Então acho que mais financiamento direto dos órgãos públicos e privados, além do apoio da sociedade civil, também da credibilidade. Eu tenho certeza que o acesso ao dinheiro faria com que a gente acertasse melhor e errasse com mais segurança porque empreender também precisa ser sobre a possibilidade de errar. Porque quando a gente fala sobre investimento, a gente está falando sobre riscos e riscos ele precisa ser considerado, inclusive com uma margem de erros e mulheres negras não têm essa possibilidade de acertar. Acertar com grana, com o dinheiro em mãos, muito menos de errar.
MN: Como o empreendedorismo influenciou na sua carreira?
Ana Paula: O que eu aprendi como empreendedora contribuiu muito para esse segundo empreendimento de comunicação. E também nessas muitas facetas, nesses muitos braços que eu tinha ter no Ateliê Xongani, um deles era comunicação. E aí eu pude desenvolver a comunicação para abrir essa segunda empresa. Então a minha trajetória de empreendedorismo influenciou totalmente na minha trajetória como comunicadora, além do que eu falei na pergunta anterior que o meu primeiro empreendimento financiou o meu segundo empreendimento. Isso é uma coisa que me orgulha muito. Então o Ateliê Xongani deu o espaço de autonomia para a Ana Paula Xongani, não só a grana, mas tempo e estrutura. Isso é muito fundamental. Isso é muito bonito. O que a gente pretende como projeto de futuro, um projeto de autonomia onde a gente pode sustentar e investir nos nossos próprios projetos sonhos e acreditar neles.
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