Mundo Negro

Amor contra-colonial ou a solidão da mulher preta

Foto: Reprodução/Freepik

Texto: Vanessa Rodrigues (Professora e Psicanalista)

O “Dia dos Namorados” chegou e mesmo sendo uma data estritamente comercial, pode engatilhar sensações atreladas ao despertencimento, insuficiência e desamparo. Falar de amor para o povo preto, sobretudo para as mulheres e pessoas sexo-gênero dissidentes, na maioria das vezes tem um viés desconcertante e doloroso. Estas raízes dolorosas estão vinculadas à nossa trajetória de colonização. A diferença, como marcador de inferioridade, transformou a nossa história em uma espécie de tecnologia perene de atualização de violências. Isso ocorre por uma série de fatores, mas gostaria de destacar aqui, a percepção do senso comum, que julga vulnerabilidade afetiva como uma fraqueza. Estar receptivo ao amor é, na maioria das vezes, perigoso pois nos deixa suscetível ao desejo de um outro opressor e manipulador. O problema nessa vulnerabilidade é diretamente proporcional à quantidade de marcadores sociais sobre este corpo que deseja ser amado. 

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Junta-se a isso um conceito de amor que se relaciona diretamente à posse e à exclusividade do corpo e da alma do ser amado. Mas por que isso acontece? Vamos continuar pensando do ponto de vista histórico-social, pois é neste território que os tais marcadores são forjados. Se você nunca pensou em como os conceitos de monogamia, amor romântico, maternidade, invisibilidade do trabalho doméstico, cuidado e reprodução estão relacionados com as formas de amar, é possível que os seus relacionamentos estejam extremamente insatisfatórios. Se você se identifica como mulher  é certo que esteja. As definições destes conceitos são resultados da percepção hetero-cis-patriarcal colonizadora, e não faz bem para nenhum ser humano que deseje se relacionar, considerado uma dialética prazerosa para quem se envolve nela.

Quando Geni Nuñes nos apresenta a ideia de monogamia como opressão posta pelo ideário colonizador, ela dá nome a algo que já percebemos e conhecemos, mas que tentamos a qualquer custo manter: a colonização dos afetos. Do ponto de vista  psicanalítico freudiano, isso pode ser ilustrado na narrativa de que o outro é sempre objetificado, transformando-se em finalidade, onde o sentido da existência se direciona. De outro modo, o ser amado se  “instalou feito um posseiro” dentro do coração do outro, colonizando-o, povoando-o de mim, para mim e por mim, desconsiderando-o como autônomo e livre. Isso, na prática, significa que os marcadores sociais que nos atravessarem como existência, se transformarão em parâmetros para regular o quanto seremos mais ou menos “amáveis” pelo outro. Uma estrutura perversa, que desconsidera a diversidade única que mora em cada um, em detrimento de rótulos e de um sistema de trocas que se referem mais a “poder sobre” do que “troca com”. Tem saída?

Tem gente “fina, elegante e sincera” pensando sobre isso. Destaco, além da já citada Geni Nuñes, o trabalho incrível de Jaciana Melquiades, Renato Noguera e Claudio Thebas no Brasil, sem deixar de citar bell hooks. Orys que tem pensado o amor como encontro, confluência e construção de sentido. Frida Khalo em sua célebre frase “onde não puderes amar, não te demores”, faz uma síntese do que seria uma solução a curto, médio prazo desta questão, no âmbito do particular. É preciso ter coragem para se vulnerabilizar ao amor. Por outro lado, é preciso ter rede. Criar espaços de amor e cuidado, não pode ser tarefa específica de uma pessoa. Amar é ação, com já diria hooks, mas para além disso é confluência, parafraseando Noguera. Sobunfo Some, entende que o amor é a possibilidade de realizar-se como potência com outro na comunidade, e que é característica do espírito amar. Jaciana brada aos quatro cantos em seu podcast “Eu preciso falar de amor”, que está cansada de des-amor e que vai amar de qualquer jeito, mas só em lugares que a caibam. 

Tem saída? Talvez estejamos na entrada da saída. Precisamos nos aquilombar de uma forma profunda e amorosa. Nos olhar de maneira a criar espaços de potência afetiva. Caminhar na direção oposta às mazelas herdadas da colonização e nos assenhorear de nossos desejos, no sentido de criar territórios seguros de afeto amoroso, seja ele qual for. Inspirada por todos esses transpasses amorosos, nesse trabalho árduo de descobrir o amor, hoje busco confluência e liberdade. Cada promessa humana que conheço, um novo “eba!” que aprendi a buscar com meu amigo Thebas, que por sua vez aprendeu com seu Pequeno mestre: “quando a gente brinca junto, a gente vira amigo”. 

Não é um otimismo frívolo que estou anunciando. É um des-aceite aos olhares tortos, ao racismo nosso de cada dia, ao deboche e ao preconceito. Se não puder amar, não estarei presente. Se você pode amar comigo, vem ser potência de ação. Sobre este aspecto, vale lembrar que ser mulher e preta me rendeu muitos aprendizados sobre Ser/ Estar num ambiente hostil.  Estar sozinha e impossibilitada de amar, muitas vezes se refere a ser silenciada. Não vou falar mais forte que ninguém, vou falar. Não vou consertar seu racismo, vou desconsertar. Se raivosa, não estarei para o seu deleite. Devolverei o desconforto do racismo, sem me parecer com seu universal branco. Se amor é criação do espaço de amar, serei confluente, acolhedora, potente, contra-colonial e sankofa. A solidão pouco a pouco se dissipa, nos encontros que me fortalecem. Esse é só o início da mudança. Feliz dia do Amor! Dos encontros… e dos namorados também!

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