A violência de Estado e a barbárie cotidiana no Brasil

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A violência de Estado e a barbárie cotidiana no Brasil
Imagens: Reprodução

Texto: Rodrigo França

As cenas de um policial militar jogando um homem negro de uma ponte em Carapicuíba, São Paulo, e o assassinato de um motociclista em Pernambuco após um policial se recusar a pagar R$ 7 por uma corrida de aplicativo revelam a brutalidade e o desprezo pela vida que sustentam a política de segurança pública no Brasil. Esses casos, longe de serem “excessos” ou desvios, são sintomas de uma estrutura historicamente forjada para reprimir, controlar e exterminar pessoas negras. Como bem apontou Abdias do Nascimento em seu clássico “O Genocídio do Negro Brasileiro”, vivemos sob um Estado que naturaliza e promove o extermínio da população negra, num processo que combina racismo estrutural, desumanização e indiferença social.

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A criação da Polícia Militar no Brasil remonta ao período imperial, com a formação de milícias voltadas para conter levantes de escravizados e proteger as elites agrárias. Com o fim da escravidão, em 1888, e a abolição formal do regime escravocrata, a estrutura policial foi reconfigurada para manter a ordem racial e social. A repressão mudou de forma, mas não de objetivo: os antigos escravizados e seus descendentes foram lançados à marginalização e vistos pelo Estado como inimigos em potencial. Durante a ditadura militar, a PM foi consolidada em sua lógica bélica, sendo concebida não para proteger cidadãos, mas para sufocar insurgências, principalmente as das classes populares e racializadas.

Hoje, o Brasil tem uma das polícias mais letais do mundo. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2023, mais de 80% das pessoas mortas por agentes policiais eram negras. Entre os jovens assassinados no país, 77% também são negros, segundo o Atlas da Violência. Essa violência, endossada por discursos que legitimam o “uso da força”, é especialmente estimulada por governadores como o de São Paulo, que tem adotado uma retórica ostensivamente belicista. A ideia de que “bandido bom é bandido morto”, que permeia a sociedade e o poder público, traduz-se em execuções sumárias e abusos como os de Carapicuíba. O bandido, ou o suposto bandido que merece ser morto, quase sempre é o negro. Já o criminoso de colarinho branco é amplamente protegido por um sistema que o favorece, desde a abordagem policial até as instâncias jurídicas, perpetuando a seletividade da justiça e reafirmando o racismo.

A naturalização da violência é um dos maiores triunfos do racismo. A sociedade brasileira aprendeu a aceitar, e muitas vezes a aplaudir, a morte de pessoas negras, especialmente quando mediada por uma farda. O genocídio da população negra não é apenas físico, mas também simbólico. Ele se manifesta na criminalização da pobreza, na exclusão dos espaços de poder e na desumanização cotidiana. Vidas negras são descartáveis, como exemplificam os casos recentes. No Brasil, a vida de uma pessoa negra, seja ela um homem jogado de uma ponte ou um trabalhador executado por causa de uma dívida irrisória, vale menos que o custo de um almoço. Tal lógica genocida também se expressa no encarceramento em massa. Jovens negros são as maiores vítimas de um sistema penal que pune seletivamente. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 835 mil presos. Destes, 66,7% são negros. A prisão, assim como o assassinato, é mais uma ferramenta de controle, reafirmando a herança colonial que criminalizava a presença negra nos espaços públicos após a abolição.

A violência policial e o genocídio não se sustentam sem o apoio, direto ou velado, da sociedade. Grande parte da população brasileira foi condicionada a acreditar que a segurança pública é sinônimo de repressão, e não de prevenção. O caso em Pernambuco, em que um policial militar assassinou um trabalhador por R$ 7, é uma demonstração crua de como a banalidade da perversidade opera em todos os níveis da vida cotidiana. Não foi apenas um ato individual, mas a culminação de um sistema que legitima o uso da força como resposta para qualquer conflito, mesmo os mais triviais.

Esses episódios escancaram a falência ética e moral de uma sociedade que tolera, quando não incentiva, a barbárie. Chegamos ao ponto em que uma corrida de aplicativo pode custar uma vida, e em que a violência se torna o principal mediador das relações humanas. É urgente denunciar essa lógica, que, como já apontava Abdias do Nascimento, não é um acidente, mas uma política deliberada de extermínio.

A transformação passa pelo desmonte desse modelo de segurança pública genocida e pela construção de um sistema que proteja todas as vidas, em vez de destruí-las. Isso exige enfrentar o racismo que permeia as instituições brasileiras e reimaginar o papel da polícia na sociedade. Não é uma tarefa fácil, mas é indispensável. Enquanto o Estado e a sociedade permanecerem indiferentes, a lista de vítimas continuará a crescer, não haverá democracia e a brutalidade será a regra, não a exceção.

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