
Na última semana, um trecho da coletiva de imprensa do filme Depois da Caçada viralizou nas redes. O elenco contava com a brilhante Ayo Edebiri, ao lado de Julia Roberts e Andrew Garfield. A cena que circulou mostra a jornalista italiana Federica Polidoro perguntando: “Agora que a era do #MeToo e do Black Lives Matter acabaram, o que devemos esperar de Hollywood e o que perdemos, se é que perdemos algo, com a era do politicamente correto?”
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A questão, carregada de viés problemático, foi direcionada apenas a Julia e Andrew, ignorando Ayo — justamente a pessoa cuja contribuição seria central nesse debate. O constrangimento foi imediato. Edebiri, firme, interveio: reafirmou que os movimentos não acabaram e que vão além de hashtags. Mais do que responder, ela expôs a exclusão que se desenhava: “eu estou aqui, isso é sobre mim, então eu começo”.
Assisti ao vídeo algumas vezes, atenta à força de Ayo ao derrubar o muro de invisibilização que se erguia à sua frente. Embora a pergunta tivesse sido cuidadosamente direcionada aos colegas brancos, ela não permitiu que a situação se consolidasse como apagamento. Sua postura foi um recado direto: presença é resistência.
Esse episódio me trouxe lembranças. No mercado financeiro, eu liderava um projeto robusto, já aprovado pela diretoria. A etapa seguinte seria apresentar o plano de ação a um grupo de gerentes médios. Tudo pronto, estruturado, incontestável. Ainda assim, pedi a um diretor — homem branco e meu mentor — que entrasse na reunião por quinze minutos, apenas como observador. Ele riu da minha insistência, disse que não era necessário, já que o trabalho estava impecável e chancelado. Mas aceitei correr o risco do incômodo: pedi que testasse.
Ele entrou com a reunião em andamento. Eu já havia apresentado boa parte do plano e percebia os olhares enviesados, as tentativas de questionamento por detalhes irrelevantes, o peso da dúvida que não se sustentava no conteúdo, mas no corpo que o apresentava. Com poucos minutos na sala, recebi dele uma mensagem curta: “Entendi o que você queria dizer”. Logo depois, abriu o microfone e, em tom firme, disse: “Começamos na segunda-feira e o orçamento necessário sai da área de vocês. Pode seguir, Ana K.”
Ali, naquele instante, o silêncio foi de outro tipo. O mesmo projeto que até então era contestado passou a ser incontestável porque um homem branco, em posição hierárquica superior, o endossou em voz alta. Embora eu estivesse conduzindo a reunião, só fui verdadeiramente legitimada quando ele verbalizou o óbvio.
Não caia na armadilha de pensar em como ele foi “incrível”. Assim como não cabe aplaudir Julia e Andrew no episódio com Ayo. O que precisa ser discutido é a violência de ter que desenhar estratégias, pedir reforços e criar atalhos para ser ouvida — mesmo quando o trabalho é sólido e as vivências são legítimas. É sobre o desgaste de precisar provar o tempo todo que pertencemos à sala, ao debate, ao lugar.
Já vivi situações em que consegui sustentar minha posição sem intervenção de superiores. Mas cada vitória vinha acompanhada de um cansaço brutal, da dúvida corrosiva: será que fui lida como reativa? Será que passei do ponto? Será que o público não gostou da firmeza da minha postura? Ayo não deveria carregar essas perguntas depois de uma resposta tão necessária. Eu espero que ela não tenha se feito essas mesmas cobranças.
Após a repercussão, Polidoro se defendeu dizendo ter uma família multiétnica, feminista e marcada pela imigração, além de entrevistas realizadas com pessoas de diferentes origens. Nas palavras dela: “Na minha visão, os verdadeiros racistas são aqueles que enxergam racismo em tudo e buscam silenciar o jornalismo.” O discurso soa familiar: “não sou racista, tenho amigos ou parentes negros”. Para a jornalista, não haveria protocolo que determine a quem direcionar perguntas, portanto, não haveria racismo.
Mas para nós não é tão simples assim. Não é “só uma pergunta”. É mais uma ferida que se abre na sutileza. É exaustivo explicar porque, depois de correr três vezes mais para chegar ao mesmo lugar e provar dez vezes que somos competentes, ainda podemos ser invisibilizadas por um gesto que pretende ser neutro. Essa é a violência racial que se infiltra nas entrelinhas, sofisticada o bastante para ser negada, mas brutal o suficiente para nunca ser esquecida.
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