Texto: Rodrigo França
No último Brasil Eco Fashion Week, a moda brasileira presenciou algo além do esperado. Dih Morais, designer quilombola que carrega nas mãos a terra de Jequié e nos olhos o brilho de quem já caminhou descalço por ruas de barro, trouxe à passarela não apenas uma coleção, mas um território inteiro. Quilombo Barro Preto, sua estreia solo, é uma ode à ancestralidade, uma convocação ao passado que pulsa no presente e se veste de futuro.
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As peças criadas para essa coleção não são apenas roupas; são histórias tramadas em algodão, barro e cabaça. Os tons terrosos da caatinga – crus, marrons, com raros lampejos de vermelho e preto – evocam um sertão que não apenas marca a paisagem, mas molda corpos, trajetórias e identidades. Cada escolha de material resgata um pedaço da história: o linho, símbolo da liberdade para aqueles que um dia compraram sua alforria e buscaram dignidade em um tecido nobre; a palha da costa, com sua força simbólica ligada à religião de matriz africana; o crochê artesanal, uma técnica de persistência e paciência.
As franjas recortadas com precisão lembram as ondas de um rio. Não um rio qualquer, mas aquele que alimentou uma avó de pés firmes e mãos calejadas, a Mainha, que pescava na cheia para garantir o sustento de sua numerosa família. Dih não desenha apenas formas e tecidos; ele desenha memórias, costura lembranças que ecoam como cânticos no barro vermelho.
As mãos que produziram essa coleção têm nome, têm rosto. São as mãos das mulheres do Quilombo Barro Preto, que Dih convocou não como operárias de um sonho distante, mas como cúmplices de um ato de resistência e criação. Essas artesãs agora são as guardiãs do futuro que ele vislumbra. Elas moldaram bolsas de cabaça, já icônicas, e inusitadas bolsas de barro, tão fortes e frágeis quanto o solo de onde nasceram.
“Quero que cada peça carregue o peso das mãos que a fizeram, mas também a leveza do vento que sopra na caatinga ao entardecer”, parece dizer a coleção. E assim acontece: os vestidos, as biojoias criadas em colaboração com o artista indígena Dieimisom Sfair, os detalhes que dançam entre a moda e a arte – tudo se une em um movimento que transcende o vestuário.
A coleção é também um manifesto político. Não há alarde, mas há força. Ao trazer para o centro a estética quilombola e a produção artesanal, Dih Morais não só desafia os padrões hegemônicos de moda, como também expande as possibilidades do que a moda brasileira pode ser. Ele transforma seu ateliê no 21º andar de um edifício tombado no centro de São Paulo em um quilombo contemporâneo, onde a palavra de ordem é a coletividade.
Cada passo na passarela do Brasil Eco Fashion Week parecia ecoar os muitos passos dados por Dih na infância, quando corria pelas ruas não pavimentadas de Jequié. Aquelas marcas no barro agora se tornaram arte. E essa arte não pede licença; ela chega para ocupar espaço.
Quilombo Barro Preto não é apenas uma coleção. É um chão que se veste, uma história que se calça, uma ancestralidade que se carrega. É a moda que lembra, resiste e constrói. É o barro que molda o futuro, sem jamais esquecer o peso de sua origem.
Confira as fotos do desfile: