“A cozinha sempre foi da mulher preta”: Cidinha Santiago, a chef que levou a excelência negra para a TV brasileira

0
“A cozinha sempre foi da mulher preta”: Cidinha Santiago, a chef que levou a excelência negra para a TV brasileira
Foto Divulgação

A mineira Cidinha Santiago é uma das grandes referências da gastronomia brasileira. Com mais de 60 anos de vivência na cozinha e 35 anos de televisão, ela atravessou o tempo como guardiã da culinária ancestral, das receitas feitas com afeto e da valorização das mulheres negras na gastronomia. Sua trajetória começou ainda na infância, e o Brasil a conheceu no programa de Ofélia, onde permaneceu por décadas como parceira de cena e de sabor.

“Eu tinha cinco anos quando fiz meu primeiro arroz no fogão a lenha. Minha mãe saiu para buscar lenha e deixou meus irmãos comigo. Quando voltou, achou que eu tinha pedido comida à vizinha, mas eu respondi: ‘Não, eu fiz o arroz’.”

Notícias Relacionadas


Desde então, Cidinha não parou mais. Trabalhou como babá e empregada doméstica, sempre mantendo a cozinha como centro da sua vida. Ainda jovem, escreveu um livro com receitas que aprendeu nas casas onde trabalhou, e com esse livro teve sua primeira aparição na televisão. O talento chamou atenção, e sua formação seguiu paralelamente ao trabalho, sempre buscando cursos e formações técnicas, mesmo sem acesso à universidade formal. Estudou enquanto criava filhos de outras famílias, cozinhava para eventos e construía uma reputação sólida que a levou a lecionar em instituições como a Renascença, Anhembi Morumbi e Anhanguera.

Ela mesma resume com orgulho sua jornada: “Eu aceitei o título de chef porque coordenei equipes, inaugurei faculdades, levei a cozinha para a TV e fui a primeira em muitos espaços. Mas sou, com muito orgulho, uma cozinheira raiz.”

A seguir, publicamos a entrevista completa com Cidinha Santiago. Um registro histórico e afetivo para o Guia Black Chefs.

A SUA TRAJETÓRIA É UMA REFERÊNCIA PARA MUITAS MULHERES NEGRAS QUE DESEJAM ENTRAR NA COZINHA PROFISSIONAL. ENTÃO, EU GOSTARIA DE SABER COMO FOI O SEU CAMINHO ATÉ SE TORNAR UMA CHEF RECONHECIDA TANTO NA TELEVISÃO QUANTO NA GASTRONOMIA POPULAR.

Resposta: Eu comecei muito cedo, aqui em Belo Miro Braga, onde voltei a morar. Saí daqui ainda muito nova para trabalhar. Comecei a trabalhar com cinco anos. Minha mãe saiu um dia para buscar lenha — somos 12 irmãos — e me deixou com três deles, inclusive o mais novo, que ainda mamava. Como ela demorou a voltar, subi num banquinho e fiz meu primeiro arroz no fogão a lenha. Quando ela voltou, achou que eu tinha pedido comida à vizinha, mas eu disse que tinha feito o arroz. Ela provou, gostou, e no dia seguinte me ensinou a fazer o feijão, a verdura e a mistura. Desde então, nunca mais parei.

Com 10 anos comecei a trabalhar como babá, sempre com a cozinha presente. Estudei aqui mesmo, fiz o ginásio, e depois fui para Juiz de Fora, onde queria fazer enfermagem. Trabalhava como empregada doméstica e cozinheira de forno e fogão. Aos 18 anos já trabalhava como cozinheira. Nessa trajetória, resolvi escrever um livro com receitas que aprendi nas casas onde trabalhei, dando um toque mais mineiro, mais brasileiro. Lancei o livro em 1983 ou 84, no CESC, e depois em Muriaé. A filha da minha madrinha trabalhava na Globo e me indicou. Foi a primeira vez que apareci na TV. Fiz uma torta do meu livro. Isso tudo antes de ir para São Paulo, onde conheci o pessoal da Casa de Cultura Afro-Brasileira, que foi fundamental na minha vida.

COMO FOI ESSA TRANSIÇÃO PARA SÃO PAULO E PARA A TELEVISÃO?

Resposta: A menina para quem trabalhei como babá em Juiz de Fora se mudou para São Paulo e me chamou. Como já tinha feito curso de enfermagem, fui. Mas nunca parei de cozinhar. Em São Paulo, dei aula em algumas escolas e procurei me aperfeiçoar, mesmo sem faculdade. Fiz cursos com a Continental 2001, Prosdócimo… Como os meninos da casa ficavam o dia inteiro na escola, eu deixava tudo pronto e aproveitava para procurar cursos. Fiz um curso de congelados e comecei a trabalhar com isso: chegava às 7h da manhã, preparava 15 pratos etiquetados e voltava à casa depois de 15 dias ou um mês.

Depois que terminei um curso da Prosdócimo, fui apresentada ao Benjamim Abraão, referência em padaria em São Paulo. Mostrei meu livro para uma moça da Continental e ela disse que o Benjamim precisava de uma assistente. Trabalhei com ele na feira e depois ele me ofereceu um curso de pães. Nesse período, também dirigi uma creche da Casa de Cultura Afro-Brasileira com 300 crianças. Fiz uma horta comunitária, tirei 70 crianças da desnutrição com alimentação, foi um trabalho muito importante. Fiquei lá uns cinco anos.

O Benjamim me indicou para trabalhar com a Ofélia na televisão. Ele disse: “Se você tiver paciência, vai ser muito bom para você e para ela”. Fui e acabei ficando 35 anos na TV brasileira. Durante a pandemia, conseguimos fazer uma boa transição para o digital, com lives e tudo mais. Em 2017, fui reconhecida pela Federação Italiana de Gastronomia como chef honorária. Também recebi o prêmio Dólmã como embaixadora da gastronomia por São Paulo e influenciadora digital.

A SENHORA MENCIONOU QUE VOLTOU PARA MINAS. COMO TEM SIDO ESSA NOVA FASE DA SUA VIDA?

Resposta: Hoje estou com 67 anos. Quando me aposentei, decidi voltar para Minas. Ainda há muito a ser feito aqui. Quando saí de Minas, todo mundo cozinhava. Quando voltei, percebi que isso tinha mudado. Uma cidade pequena como essa, com 4 mil habitantes, já tem fast food entrando. Ao voltar, recebi o título de cidadã benemérita e inaugurei a escola do legislativo com um curso básico de culinária. Tenho um projeto de viver sem geladeira — como era quando saí daqui. Fiz minha casa com um quarto, banheiro e uma cozinha. Trouxe 30 caixas de livros de gastronomia, herdei alguns da Ofélia, ganhei outros, tenho uma biblioteca enorme. Minha cozinha serve para palestras, aulas, visitas.

Com o curso de culinária, percebi que não bastava ensinar receita. Tive que ser psicóloga, coach… As mulheres aqui estavam cabisbaixas, muitas sofrendo violência. E o curso virou um espaço de autoestima e acolhimento. Já iniciei uma horta pedagógica, tenho projetos de cinema e educação alimentar com as crianças. Viver sem geladeira também é educativo: faço compotas, geleias, licores. Compro carne na hora, ainda tem venda aqui, não supermercado. É sobre qualidade de vida.

E SOBRE A GOURMETIZAÇÃO DA CULINÁRIA BRASILEIRA, ESPECIALMENTE COM PRATOS DE ORIGEM AFRICANA E PERIFÉRICA? A SENHORA ACREDITA QUE ESSA VALORIZAÇÃO ESTÁ CHEGANDO DE FORMA JUSTA PARA QUEM CRIOU ESSES PRATOS?

Resposta: Para quem criou, não. Eu, graças a Deus, participei de eventos importantes, como um no Unique Garden, em São Paulo, no Dia Internacional das Mulheres. Foi um lugar muito requintado. Vi minhas comidinhas — salada de batata-doce, franguinho com quiabo — todas como finger food. Ficou bonito, bem apresentado. Mas a questão é que quando a cozinha virou gourmet, quem apareceu foi o chef. E geralmente o homem.

A cozinha sempre foi da mulher, especialmente da mulher preta. Desde empregadas domésticas até donas de casa, fomos nós que seguramos essa cultura. Quando a cozinha passou a dar status, muitos homens passaram a ocupar esse espaço, e muitas mulheres começaram a dizer que não gostam de cozinhar. Isso me preocupa. Falo disso no livro “Um Pé na Cozinha”, da Thaí, onde sou uma das personagens. Sempre cortamos alimentos como hoje chamam de “julienne”, “brunoise”… só não sabíamos nomear. Isso é apagamento. O que antes era natural virou técnica francesa.

A SENHORA SE IDENTIFICA MAIS COMO CHEF OU COMO COZINHEIRA? QUAL A DIFERENÇA?

Resposta: Hoje me identifico com os dois. Chef é quem chefia um grupo, e eu chefiei. Levei a cozinha para a televisão, inaugurei faculdades, dei aulas. Aprendi televisão com a Ofélia. Tenho o respeito de outros chefs, que sempre valorizaram minha experiência prática. Trabalhei com muitos que vinham da faculdade, e trocávamos muito. Por isso aceitei o título de chef, e uso com orgulho. Mas sou cozinheira raiz, sim. E me orgulho muito disso também.

ESTAMOS NO JULHO DAS PRETAS, QUE CELEBRA O LEGADO DAS MULHERES NEGRAS. COMO A SENHORA ENXERGA O PAPEL DA MULHER PRETA NA GASTRONOMIA BRASILEIRA?

Resposta: A Benê Ricardo foi a primeira. Tenho um livro dela, da DBA, autografado pouco antes de ela falecer. Mas a Benê não teve o reconhecimento que merecia. Foi ela quem ensinou a comida brasileira a muitos chefs, inclusive franceses. Ela assinava cardápios, fazia eventos em casas chiques. Foi nossa pioneira. Quando ela estudou gastronomia foi no Senac, em Águas de São Pedro. Já estive lá para homenageá-la. Em toda palestra ou evento que participo, faço questão de falar da Benê.

Agora estou montando minha própria casa de cultura. Colei meus 35 certificados na parede. Vai ser um espaço para palestras, aulas, visitas. Uma cozinha viva, com memória. Não vou esperar que façam por mim. Já estou fazendo.

PARA ENCERRAR, QUAIS SÃO OS PRATOS QUE A SENHORA MAIS AMA PREPARAR, AQUELES QUE TE CONECTAM COM SUA HISTÓRIA E ANCESTRALIDADE?

Resposta: Eu gosto de tudo, mas me conecto muito com o inhame. Fiz um bolinho de inhame para um projeto da Estella Artois com outras 10 mulheres do Brasil. Foram mil bolsas de estudo para mulheres de baixa renda. Meu bolinho ficou no cardápio da Baianeira por 15 dias. Também gosto de inhame com quiabo, tutu com lombo… Sou da comida de horta, de quintal. Faço doces, compotas, geleias, licores.

Hoje em dia todo mundo quer se especializar — confeitaria, padaria, cozinha quente, fria. Eu venho de um tempo em que a gente precisava saber fazer tudo. E isso é riqueza. Só acho que precisamos dar nome ao que é nosso. A abobrinha que minha mãe cortava sempre foi “julienne”. A cebola sempre teve corte “brunoise”. Mas a gente não nomeava. Agora, dizem que a moqueca tem que ser “brunoise”. E isso pesa. Pesa para quem? Isso é apagamento. Por isso, sigo defendendo nossa cozinha com orgulho.

Notícias Recentes

Participe de nosso grupo no Telegram

Receba notícias quentinhas do site pelo nosso Telegram, clique no
botão abaixo para acessar as novidades.

Comments

No posts to display