
Por: Priscilla Arantes
Educação infantil baiana protagoniza experiências pioneiras de reparação e pertencimento
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Chegamos ao mês da criança, e confesso: este ano carrega um significado especial pra mim. Sou mãe de uma menina negra de seis anos, e juntas, encerramos um ciclo fundamental da vida dela: a primeira infância. Um ciclo que, para muitas famílias, é sinônimo de descobertas, alegrias e aprendizados; mas que, para famílias negras, também é atravessado pela urgência da proteção.
Porque sim, a infância negra ainda precisa ser protegida.
E não falo de proteção física apenas, mas da proteção simbólica, emocional, daquelas que moldam o que uma criança vai acreditar sobre si. De acordo com uma pesquisa Datafolha encomendada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (2025), uma em cada seis crianças de até seis anos no Brasil já foi vítima de racismo. O levantamento mostra que 10% dos cuidadores de crianças até 3 anos afirmam que elas sofreram discriminação racial, e esse número sobe para 21% entre crianças de 4 a 6 anos. Esses números não são apenas dados, são feridas abertas. E elas começam cedo.
O racismo na primeira infância não chega com gritos ou agressões. Ele se infiltra de forma sutil: nos elogios enviesados, nos silêncios, nas ausências, nas narrativas que ainda romantizam o padrão eurocêntrico de beleza e comportamento. Ele aparece quando a boneca preferida nunca tem o cabelo crespo, quando o livro da escola traz apenas uma cor de pele como protagonista, ou quando a criança aprende — mesmo sem palavras — que o bonito é sempre o outro.
A infância negra sob vigilância
Na minha casa, a vigilância é constante. Os brinquedos são escolhidos com cuidado, as referências negras estão espalhadas por todos os cômodos. Poderia dizer que vivemos em um pequeno quilombo de bonecas e livros. Na TV, evito conteúdos que reforcem padrões coloniais de beleza, preferindo animações neutras, onde ao menos a ausência de estereótipos já é um respiro. Os livros são as minhas maiores aliadas. É ali, entre histórias e ilustrações, que consigo ativar a imaginação e proteger o que considero o bem mais precioso da minha filha: a autoestima.
Mas, como toda mãe, há um momento em que o meu olhar não alcança: o tempo que ela passa na escola. E foi exatamente aí que encontrei um dos capítulos mais bonitos e transformadores da nossa jornada.
Quando a escola decide se transformar
Durante muito tempo, acreditei que o compromisso racial seria uma luta solitária, travada dentro de casa, entre conversas e reforços diários de identidade. Até perceber que não, educar para a equidade é um dever coletivo, e a escola precisa ser parte ativa desse processo.
Foi com esse espírito que encontrei a Escola Villa Criar, localizada em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, a cidade mais negra do Brasil, onde 79,7% da população se autodeclara negra, segundo o Censo de 2022. A Villa Criar é uma instituição construtivista, que segue a abordagem Reggio Emilia, valorizando a escuta, a autonomia e o protagonismo da criança. Um perfil comum para famílias de classe média branca. Mas o que realmente me surpreendeu foi algo mais profundo: a intencionalidade com que a escola decidiu se transformar.
Quando levei minhas inquietações, encontrei uma equipe que já havia desenhado um projeto antirracista robusto. A coordenadora pedagógica, Brisa Marcelino, me disse uma frase que se tornou norteadora:
“Esse é o maior legado que podemos oferecer para as crianças de hoje, que serão os adultos de amanhã. O reconhecimento das raízes africanas presentes na nossa história e o sentimento de pertencimento de quem faz parte direta dela.”
Essa fala resume o que a escola vem colocando em prática: o antirracismo como princípio educativo, não como pauta eventual. Hoje, o projeto da Villa Criar é uma carta de compromisso com a sociedade. A instituição cumpre integralmente as exigências da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e as leis federais 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, e 11.645/2008, que incluiu também a cultura indígena no currículo escolar.
Os educadores passam por formações contínuas, recebem materiais atualizados e participam de trocas com profissionais de referência em educação antirracista. As crianças aprendem sobre o continente africano com a mesma naturalidade com que aprendem sobre Portugal, entendendo o Brasil não como uma “descoberta”, mas como o encontro de povos.
As saídas pedagógicas também são intencionais: a última delas foi uma visita ao Museu Casa do Benin, no Pelourinho, com as turmas de 5 e 6 anos, um mergulho real na ancestralidade e na história viva da nossa cidade.
Quando o antirracismo é o centro e não o tema
Mas se a Villa Criar representa uma escola que se reconstrói com intencionalidade, há em Salvador uma instituição que nasceu com o antirracismo no DNA: a Escola de Educação Infantil Maria Felipa.
Idealizada pela escritora e pesquisadora Dra. Bárbara Carine e pela educadora Maju Passos, ambas especialistas em equidade racial e de gênero, a Maria Felipa é pioneira no Brasil em educação 100% afrocentrada.
Seu nome homenageia uma mulher negra marisqueira, estrategista e guerreira do Recôncavo Baiano, símbolo de resistência e liderança feminina.
Lá, cada detalhe do cotidiano escolar, da escolha dos brinquedos ao cardápio, das cores das paredes às metodologias pedagógicas, é pensado a partir da perspectiva afrocentrada.
A Maria Felipa não apenas ensina sobre o continente africano, ela parte dele. É uma escola que propõe uma revolução epistemológica: romper com a ideia de que o conhecimento válido é apenas o produzido sob lentes eurocêntricas. Em vez de adaptar o currículo às pautas raciais, ela faz da cultura afro-brasileira o centro estruturante do aprendizado.
Esse movimento, liderado por educadoras baianas, mostra o poder de transformação que a educação pode exercer quando decide ser agente ativo de mudança e não espectadora do racismo estrutural.
A Bahia ensina
Essas duas experiências, Villa Criar e Maria Felipa, se encontram em pontos diferentes da mesma estrada: a da transformação. Uma representa a coragem da reconstrução intencional dentro de uma estrutura tradicional de ensino. A outra, a ousadia de recriar o mundo a partir das nossas raízes.
E o que ambas provam é que a Bahia não é apenas um território de resistência, é um laboratório vivo de uma nova educação, onde o antirracismo não é conceito, é prática.
A educação é, por essência, um caminho sem volta. E quando uma criança negra cresce em um ambiente onde é valorizada, onde se vê representada e respeitada, não há retorno possível para o apagamento. Ela carrega em si o espelho da mudança que o país precisa ver.
A infância é o alicerce da sociedade que desejamos construir. E se o racismo começa cedo, a revolução também precisa começar cedo, nas escolas, nos livros, nos currículos e nas consciências.
Porque, no fim das contas, educar antirracista não é um favor: é uma responsabilidade civilizatória.
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