
Texto: Luciano Ramos
(Contém spoilers)*
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Em Até a Última Gota, o diretor Tyler Perry nos oferece um filme que é mais do que drama. É denúncia. É espelho. É ferida aberta. A personagem Janyah — magistralmente interpretada por Taraji P. Henson — não é apenas uma mulher negra em desespero. Ela é o retrato vivo das consequências devastadoras do racismo estrutural, do machismo e da desigualdade de classe que moldam, controlam e, por fim, esmagam a vida de milhões de mulheres negras no mundo real.
Janyah é mãe solo, cuidadora, profissional dedicada. Mas no sistema em que vive, isso nunca é suficiente. Ela acorda às 5h da manhã, enfrenta dois empregos mal remunerados, carrega a responsabilidade integral pelo cuidado da filha doente e lida com uma burocracia institucional fria, cega e racista. Ao longo de um único dia, ela é despejada, demitida, descredibilizada, ignorada por instituições públicas e privadas — tudo isso enquanto tenta salvar a vida da filha, que precisa de um tratamento urgente.
Mas por que essa história nos atravessa tão fundo? Porque não é ficção. É estrutura. É cotidiano.

Racismo estrutural: a negação da humanidade
O racismo aqui não aparece com capuz, nem com insultos gritados. Ele aparece com um sorriso burocrático, com a falta de atendimento no hospital, com o gerente do banco que a humilha, com a assistente social que desacredita sua palavra. O racismo impede que Janyah seja vista como uma mulher digna de confiança, de cuidado, de escuta.
Janyah não é enxergada como mãe. É tratada como ameaça. Como suspeita. Como problema. O sistema não se importa com sua dor — e pior: não acredita nela. Isso é o que o racismo estrutural faz com mulheres negras todos os dias. Ele opera silenciosamente, em camadas, retirando direitos, secando oportunidades, apagando afetos. E quando elas reagem, são tratadas como loucas, perigosas, irracionais.

Machismo e a ausência do cuidado partilhado
Janyah está sozinha. Nenhuma figura masculina a apoia. O pai da criança é ausente. No trabalho, homens brancos ocupam posições de poder e controle, enquanto ela é explorada e descartada. Essa solidão feminina não é casual. É estrutural. O machismo retira dos homens a responsabilidade pelo cuidado e joga nas costas das mulheres — especialmente das mulheres negras — o peso de sustentar o mundo. Se algo dá errado, a culpa também é delas.
A dor de Janyah não é apenas pela filha. É também pela carga solitária, insuportável, de ser tudo para todos e ainda ser desacreditada. A masculinidade, neste contexto, aparece como ausência. E essa ausência é uma forma de violência.

Classismo e o ciclo da pobreza
O classismo se materializa em cada porta fechada. Janyah mora num prédio em condições precárias, pega ônibus lotado, raciona comida, não tem acesso a crédito, não tem tempo para o próprio sofrimento. Quando sua filha adoece, ela não tem a quem recorrer. O sistema não oferece amparo, mas armadilhas: se ela falta ao trabalho, perde o emprego; se deixa a filha sozinha, é negligente; se pede ajuda, é suspeita.
A falta de acesso a recursos básicos — moradia, saúde, renda — empurra Janyah para uma espiral de desespero que culmina numa ação extrema: o assalto a banco. Mas o filme deixa claro: essa não é uma história sobre crime. É uma história sobre abandono.

O limite entre o colapso e a resistência
Quando Janyah entra no banco, ela carrega uma arma, mas carrega também um pedido de socorro. Um pedido para ser vista, ouvida, cuidada. É o grito de quem já perdeu tudo, até mesmo a filha — e não teve tempo de chorar. A cena final, em que descobrimos que Aria já havia morrido, expõe a profundidade do trauma: Janyah estava negando a morte como forma de sobrevivência psíquica.
A dor não é individual. É coletiva. É o retrato da negligência institucional que insiste em tratar mulheres negras como descartáveis, mesmo quando elas gritam por dignidade.

Precisamos ouvir Janyah
Até a Última Gota é um filme sobre violência. Mas não a violência espetacularizada das armas. É a violência cotidiana que esmaga lentamente. A violência de ser invisível, desacreditada, usada, abandonada.
Se Janyah chegou ao limite, é porque o sistema falhou. O crime, aqui, é o abandono. É a ausência de políticas públicas. É a naturalização do sofrimento negro. É a misoginia. É o racismo. É a pobreza.
Este filme não deve ser apenas assistido. Deve ser debatido. Deve nos constranger. Porque cada “Janyah” que se cala ou enlouquece sem ser ouvida é mais uma prova de que seguimos falhando — enquanto sociedade, enquanto política, enquanto humanidade
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