A criminalização de sambistas no Brasil é uma manifestação histórica de um controle penal racializado que marginalizou práticas culturais afro-brasileiras. Surgido das tradições trazidas por africanos escravizados, o ritmo originário do Lundu (ou Lundum), rotulado genericamente como “batuques”, identificados sobretudo nas dançasdeumbigada,o samba se tornou alvo de repressão sistemática em um contexto pós-abolição. Com a abolição formal da escravização em 1888, essas pessoas, antes privadas de liberdade, foram empurradas para a exclusão social e política, enquanto suas expressões culturais que já eram rotuladas como ameaças à ordem e criminalizadas, passaram a ser ainda mais reprimidas.
A regulamentação social e penal do final do século XIX foi desenhada para estigmatizar e controlar práticas culturais que emergiam de comunidades negras. O Código Penal de 1890, por exemplo, tratava as rodas de samba como atividades ilegais, frequentemente associando-as a “vadiagem” e desordem pública. Autoridades policiais interrompiam eventos culturais e prendiam seus participantes sob a justificativa de manter a ordem pública e proteger os “bons costumes”. A justificativa para a repressão era profundamente influenciada por preconceitos sociais e visões de mundo que consideravam essas manifestações como inferiores ou incompatíveis com a ideia de progresso.
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O samba não foi o único alvo desse processo. Ele compartilhou esse estigma com outras práticas afro-brasileiras, como o candomblé e a capoeira. Todas foram perseguidas e reprimidas porque eram classificadas como “africanismos” e formas de resistência cultural e social por uma população que continuava enfrentando marginalização e privação de dignidade. A repressão às manifestações culturais negras era um reflexo do medo de que essas práticas alimentassem movimentos de coesão e resistência entre comunidades afro-brasileiras.
No início do século XX, apesar da repressão, o samba encontrou espaço para se desenvolver nos centros urbanos, especialmente no Rio de Janeiro. Ele se transformou em uma das formas mais emblemáticas de resistência cultural. O
gênero musical cresceu nas periferias, nos cortiços e nas festas populares,
conquistando progressivamente maior visibilidade. No entanto, a aceitação do samba não ocorreu sem tensões.
Durante a Era Vargas, na década de 1930, na missão de construir um projeto de Brasil “moderno e civilizado”, o governo brasileiro começou a institucionalizar o samba como um símbolo da identidadenacional. Esse reconhecimento veio com um preço: para ser aceito pela “elite”, o samba passou por um processo de adaptação e embranquecimento, perdendo parte de seus elementos originais que carregavam as marcas das tradições afro-brasileiras.
Neste cenário nasceu o samba-exaltação1, expressando o grande potencial do Estado Novo em impor seu projeto ideológico ao conjunto da sociedade, através de letras que vangloriavam a vida regrada e cultuavam o trabalho (em nítida oposição à figura do malandro até então exaltada nos sambas).
Esse processo de assimilação resultou em uma coexistência paradoxal: o samba foi exaltado como patrimônio cultural brasileiro enquanto muitas das suas raízes e seus praticantes originais permaneceram sob criminalização. Embora o samba tenha alcançado o statusde ícone cultural da brasilidade, ele nunca se desvinculou completamente das memórias de repressão que marcaram suas origens. Essa trajetória de exclusão, resistência e aceitação condicionada se repete com outras manifestações culturais contemporâneas, como o funk, que enfrentam preconceitos semelhantes por sua ligação com comunidades periféricas e majoritariamente negras.
O histórico de criminalização do samba é um capítulo emblemático de como o Brasil lida com suas identidades culturais marginalizadas. Embora hoje seja celebrado como patrimônio cultural, o samba carrega em suas melodias e versos a memória de uma longa luta por dignidade e respeito. Essa trajetória de exclusão e resistência evidencia como o controle penal atua sobre manifestações que desafiam as normas impostas, mas também como a cultura negra, em sua essência, persiste e se reinventa, resistindo aos esforços de silenciamento.
1 A maior expressão deste período é o samba “Aquarela do Brasil”, composto em 1939 por Ary Barroso.
O samba sobreviveu à repressão porque é, acima de tudo, uma expressão de identidade e resistência das comunidades que o criaram, moldaram e carregaram consigo ao longo do tempo.
Samba, a gente não perde o prazer de cantar…
Ana Luíza Ọ̀pátórọ́bi Teixeira Nazário. Advogada. Mestre em Direitos Fundamentais e Justiça (UFBA). Especialista em Ciências Penais (PUCRS).
Coordenadora de Projetos Acadêmicos do JusRacial.
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