Que alternativa pode ser o homem preto, nas relações hetero-afetivas, para uma mulher preta que esteja (por qualquer que seja o motivo) só, retirada do mundo; isolada e, quase sempre, desprovida de uma vida afetiva e física que se comprove plena, constante e minimamente saudável?
Pode o homem preto ser entendido e visto como o promotor supremo do encontro de uma mulher preta com o seu vazio existencial?
O homem preto africano e os seus descendentes pretos afrodiaspóricos também tiveram os seus valores existenciais e milenares corrompidos pelo flagelo da invasão européia na África. O periodo escravocrata trouxe danos profundos e de difícil ajustamento na percepção que um homem preto pode ter sobre si mesmo e, por extensão, sobre as mulheres de seu eixo comunitário. Os reflexos da opressão sistemática daqueles séculos podem ser sentidos até estes tempos contemporâneos.
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Por mais de 400 anos, homens pretos testemunharam a intromissão insidiosa do componente europeu em seu território físico, em sua fé religiosa, em suas tradições culturais e políticas e até mesmo em sua linearidade familiar.
Diante da desvantagem tecnológica dos africanos em relação ao uso e domínio das armas de fogo e também contando com o aliciamento ostensivo de chefes regionais, o homem branco europeu rompeu e interrompeu linhagens familiares africanas milenares, ao sequestrar um pai, ou uma mãe, ou um filho ou uma filha de uma determinada estrutura genealógica de uma dada região do continente.
Ao chegar no assim chamado “Novo Mundo”, o homem preto africano teve a sua condição humana rebaixada ao posto de “mercadoria”. Deixou de ser um homem livre para se tornar, aos olhos do agente colonizador, uma mercadoria a ser vendida, trocada e descartada, de acordo com as conveniências eventuais do opressor.
O homem preto foi introduzido em um sistema de vida, já nas Américas, em que mergulhou em um padrão de convívio social que idolatra a um deus único, que fez dos povos africanos (e de sua mão de obra farta e gratuita) o fator de viabilidade de exploração da colônia, que cultiva o apego ao dinheiro e ao acúmulo de capital, que tem a heterossexualidade como norma sistêmica, que estabelece o protagonismo do homem eurocêntrico como modelo de poder e liderança, que difunde a imagem da mulher eurocêntrica como referencial estético e de beleza, que promove a relativização do universo feminino em todas as suas formas e que perpetra a total desconsideração pelos povos nativos da terra.
Diante deste contexto que lhe era irremediavelmente desfavorável, o homem preto teve solapada toda e qualquer noção de construto familiar, na medida em que o termo família, de acordo com as definições convencionais, seja o conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco entre si e que (con)vivem na mesma casa, formando um lar.
O homem preto teve, ao longo do período escravocrata, violada a perspectiva de formação de famílias PRETAS estáveis como projeto de vida. Não poderia nunca mais se rearticular existencialmente como um homem/pai africano e a decisão de se tornar um homem/pai de família enquanto ser humano escravizado no “Novo Mundo” não era uma prerrogativa autônoma e soberana, dentro da realidade opressiva e excludente que ele vivia, na medida em que esse homem preto era visto meramente como uma “mercadoria”, e subordinada aos desmandos e humores do agente colonizador.
O homem preto escravizado testemunhava, entre o seu silêncio providencial e/ou sua omissão temerosa, as agruras das mulheres pretas. Ao seu lado, nas senzalas e espaços comuns, estavam as avós, as mães, as irmãs e as filhas pretas sofridas, oprimidas e desconsideradas em todas as suas demandas emocionais, físicas e estéticas; trabalhando de sol a sol, sem atenção, sem afeto e sem cuidados. Era esse o universo feminino mais próximo e imediato aos homens pretos que nos antecederam.
Em um nível de convivência mais distante, havia as mulheres eurocêntricas e as “sinhazinhas”, razoavelmente bem cuidadas e cercadas de todos os benefícios e privilégios que o status quo colonial proporcionava às famílias européias (e descendentes) aqui estabelecidas.
O homem preto escravizado olhava para si e via cicatrizes e maus tratos. Olhava para o homem branco e via o conforto, o controle e o poder. Olhava para a mulher preta e via o abandono e o destrato. E ao olhar a mulher branca, muito provavelmente, enxergava nela alguém com atributos diversos que, pode se deduzir, lhe estimulava os sentidos e os objetivos físicos e emocionais.
O homem preto pode ter sido induzido a pensar que, ao menos no campo afetivo, a sua existência faria algum sentido se ele mesmo “pensasse e raciocinasse” como um homem branco.
E este fetiche também pode ter sido retroalimentado pelo mito da virilidade sexual do homem preto. Esta combinação de impulsos subterrâneos de ambas as partes (homem escravizado / mulher branca reprimida) trouxe efeitos ainda mais nefastos para a percepção de si do homem preto.
E aqui pode ter sido dado início ao perverso aparecimento do mimetismo camaleônico que se abateu sobre o homem preto escravizado. Ao longo do período escravagista, se tornar “branco” (que era a “norma” social da época) pode ter passado a ser um objetivo de vida do homem preto escravizado: ser como o homem branco, ter o que o homem branco possuía, fazer o que o homem branco fazia e ter a “família” que o homem branco tinha.
E, talvez, esse ideário de vida (ascender socialmente e constituir família com a “sinhazinha”) fez com que o homem preto tivesse aprofundado o seu sentimento de indiferença e, por que não dizer?, desprezo pelas mulheres pretas de seu círculo de convívio.
O que, ao longo dos anos pode ter contribuído, e muito, para cenário de solidão e isolamento que se observa em um grande número de nossas irmãs pelo Brasil afora.
Essa hipótese pode ser melhor observada pelo padrão e frequência com que um homem preto bem sucedido e que ascende socialmente, ainda nos dias de hoje, constitui família fora do seu eixo comunitário. Provavelmente um reflexo contínuo daquele homem preto escravizado e multilado em todas as suas autopercepções e entendimento sobre si mesmo.
É preciso enfatizar que “homem branco”, no Brasil é um posicionamento e um feudo. Pra você “adquirir” uma cadeira neste feudo, é preciso que você se enquadre em certas premissas e atitudes de aceitabilidade. E se você for um homem preto pleiteando um “lugar” neste feudo, o matrimônio, a constituição familiar e O COMPARTILHAMENTO DE SEU PATRIMÔNIO FINANCEIRO com uma mulher eurocêntrica é a condição ´sine qua non´ para o estabelecimento das boas vindas dentro de um ambiente branco e elitista.
E que se dane a sinceridade do sentimento do binômio “homem preto / mulher branca”, diria um homem branco elitista. Algo como: “Só te aceito ‘no meu clube´ se você TIVER DINHEIRO e SE CASAR com uma mulher branca”.A solidão da mulher preta é um fato. E o homem preto precisa acordar para esta anomalia anacrônica dentro de nossas comunidades.
Talvez um resgate parcial de sua essência como homem preto africano, a qual era baseada no construto familiar voltado para a aliança com uma mulher preta como forma de reciprocidade afetiva e continuidade genealógica. Até a invasão do homem europeu à África, um ser humano africano era imune ao veneno branco psicológico de ter que se enxergar como uma pessoa “feia” e desprovida de atributos estéticos atraentes.
Somos bonitos e formosos! A mulher preta é infinitamente linda e merecedora de elogios e reverência!
Ouso dizer que a nossa longevidade e sobrevivência, enquanto povo dentro de um país, pode estar em um certo grau de risco fenotípico, se o flagelo da solidão da mulher preta persistir como fator endêmico entre a nossa gente.
Particularmente, entendo que os homens pretos que conseguem ter um entendimento razoável deste problema (o qual atinge implacavelmente as nossas irmãs) e que, através de suas ideias e atitudes, conseguem mitigar de alguma forma este gargalo sócio comportamental verificado em nossas comunidades, precisam criar formas de disseminação de conceitos e propostas que auxiliem na erradicação deste problema entre a nossa gente.
Que o homem preto ascenda socialmente. Nada mais legítimo. E que esta conquista, se for igualmente legítimo pensarmos na nossa existência como povo, não seja, tomara, ao preço do confinamento de mulheres pretas ao limbo da solidão e do ostracismo.
Há menos de um milênio, antes da Grande Travessia, tínhamos um olhar de afinidade, desejo, parceria e cumplicidade com as nossas mulheres pretas.
A visão eurocêntrica de mundo contaminou, na maioria das vezes de forma interesseira e por um bom tempo, a pureza desta relação.
Homens pretos, hora de “voltar pra casa”.
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