A maternidade e a carreira são dois mundos que muitas vezes parecem estar em colisão, especialmente em setores que trabalham constantemente sob pressão, como a publicidade. Jurada no Festival de Publicidade de Cannes, que aconteceu na última semana, Raphaella Martins conciliou sua a participação no evento, realizado na França com a chegada de sua segunda filha, que havia nascido apenas 15 dias antes da viagem à Paris.
“Minha intenção com essa viagem nunca foi romantizar ou reforçar esse papel de mulher múltipla, que dá conta de tudo, porque honestamente eu não dou. Encarei esta jornada porque realmente acredito que ninguém além da pessoa com alguma necessidade especial ou específica pode determinar o que ela pode e o que ela não pode fazer. Foi possível para mim porque eu queria, porque eu podia e porque a segurança da minha filha estava mantida”, pontuou a publicitária, que também é executiva na Meta, em entrevista para o site Mundo Negro, refletindo sobre como abraçou a oportunidade, mesmo com as complexidades de uma nova maternidade iminente.
“Estar lá como mãe e profissional, com a minha filha recém nascida no colo, nesta categoria e com o festival apoiando minha decisão, é muito simbólico e é também parte da evolução que eu acredito”, destacou.
Você poderia nos contar como foi contar para o pessoal do Cannes Lions sobre a sua gravidez? Você já sabia da gestação quando recebeu o convite?
Quando recebi o convite do festival no início do ano, estava na metade da minha gravidez e como a data era próxima ao nascimento previsto da minha filha, a minha primeira reação foi pensar que não poderia ir. Porém, como a categoria a que fui convidada é uma das mais relevantes da premiação, e pessoalmente um sonho meu se algum dia acontecesse o convite para juri desse que é o maior festival de publicidade do mundo, me dei a chance de exercitar o “Porque não?”, pois aprendi desde muito cedo a não brincar com sonhos e as oportunidades que aparecem em nosso caminho. E nesse exercício, comecei a pesquisar as regras de cias aéreas, conversei com a minha obstetra, meus familiares e quando entendi que existia sim viabilidade clínica e também emocional – com o apoio do meu companheiro e família – foi o momento de me posicionar, aceitar o convite oficialmente e comunicar o festival de que iria junto com as minhas filhas e família. Como estava muito certa da minha decisão, o festival precisou apenas entender logisticamente como acomodar e abrir espaço para fazer a minha presença possível.
Como foi a experiência de ter uma creche para sua filha durante o Cannes Lions?
Escolhi viver esse momento com a minha família também, pois minha licença maternidade já tinha começado. Então fiz questão de ir também com a Liz, minha filha mais velha de 05 anos, pois a viagem seria logo após o nascimento da Olivia e precisava viver esse tempo com elas o mais próximas possível, garantindo tanto conexão entre elas quanto entre todos nós. Nesta configuração, a creche foi fundamental, pois a mais velha tinha uma rotina diária com as atividades da creche enquanto eu podia focar no júri junto com a mais nova que precisava ficar comigo dentro da sala por conta da amamentação.
Qual a importância da rede de apoio para você como mãe e profissional? Sem esse apoio você teria ido?
Importante falarmos sobre isso, porque essa viagem não seria possível sem a minha rede de apoio. E também porque a minha intenção com essa viagem nunca foi romantizar ou reforçar esse papel de mulher múltipla, que dá conta de tudo, porque honestamente eu não dou. Encarei esta jornada porque realmente acredito que ninguém além da pessoa com alguma necessidade especial ou específica pode determinar o que ela pode e o que ela não pode fazer. Foi possível para mim porque eu queria, porque eu podia e porque a segurança da minha filha estava mantida. Para muitas outras mães a realidade não será essa, e não existe certo ou errado. Jamais gostaria que essa minha experiência soasse como mais uma pressão dentro das várias que mulheres e mães já experienciam. Porém, que o meu caso possa passar a leveza de termos o direito e a liberdade de escolhermos ser e estar onde quisermos sem que a sociedade nos limite e determine até onde e quais os espaços que podemos ocupar.
Pode compartilhar como foi a organização das datas do parto e do evento Cannes Lions? Quais foram os principais desafios e como você os superou?
Como falamos, nada disso seria possível se não tivesse ao meu lado pessoas fundamentais para que eu pudesse realizar essa viagem com segurança clínica e emocional: dividi o caso com a minha obstetra e desde o início conduzimos o pré-Natal regularmente tendo em mente que a Olivia era a prioridade. E o ideal era tanto seguir com meu plano de parto normal quanto manter ela comigo durante os dias da viagem, pois estes primeiros vintes dias são fundamentais nessa proximidade entre mãe e bebê. E ter a minha obstetra ao meu lado, inclusive me dando segurança sobre o quanto as decisões sobre o parto precisam respeitar tanto o bebê quanto os desejos e corpo da mãe, foi fundamental para me dar ainda mais segurança sobre a decisão de viajar. Acho que nesse processo pré-viagem o principal desafio – além de emitir passagem e passaporte de quem ainda não nasceu (risos) – foi fazer paz com as dúvidas, culpa e inseguranças que batiam de tempos em tempos. E ter ao meu lado as pessoas mais importantes neste contexto me dando apoio e me incentivando a seguir acreditando no meu sonho. Isso foi decisivo inclusive para que eu não desistisse no meio do caminho.
Comparando com a sua primeira experiência como mãe, você notou alguma diferença na forma como o mundo corporativo trata as mães agora?
A minha segunda maternidade teve mais a ver também com a minha percepção, maturidade e consciência do que me cerca e de como eu desejo ou consigo exercer minha maternidade. Então percebo um processo que é muito mais de dentro para fora e o quanto o meu posicionamento e determinação do que quero e o que não quero como mãe impacta a dinâmica dos espaços onde trabalho. Porém, de 06 anos para cá, percebo o quanto a licença parental vem se tornando uma realidade em muitas grandes companhias, o que eu acredito ser uma das principais mudanças estruturais para transformar definitivamente a dinâmica entre mães, pais e cuidadores com a chegada de um novo bebê. Deixando que o peso dos primeiros meses de nascimento recaia apenas no colo da mãe, pois realmente acredito que o processo de cuidar requer uma comunidade inteira e a mãe é apenas um dos elementos nesta composição.
Na sua opinião, qual é o papel das empresas em proporcionar um ambiente de trabalho mais inclusivo e adaptado para mães?
As empresas com medidas intencionais podem romper com a economia do cuidado, esse trabalho invisível não remunerado que é o cuidar do outro, seja um filho ou um parente ou alguém próximo, que recai prioritariamente sobre as mulheres. Tem um dado da Organização Internacional do Trabalho que diz que 76% do trabalho de cuidado não remunerado é realizado por mulheres. E expandir essa responsabilidade para todas as pessoas envolvidas com o nascimento deste bebê, com licença parental por exemplo ao invés de apenas licença maternidade, pode contribuir muito positivamente para que as dinâmicas e configurações familiares sejam transformadas e as famílias passem a desenhar o modelo de cuidado que faça sentido para eles e não o modelo que é imposto quase que como obrigação pela sociedade.
Que conselho você daria para gestantes e mães de crianças pequenas que buscam equilibrar a carreira e a maternidade?
Ouvi muitos relatos de mulheres me agradecendo e contando muitos casos de lugares e oportunidades que perderam porque achavam que não podiam ir com seus bebês ou porque outras pessoas não achavam certo. Nunca porque não queriam ou não podiam. Então meu principal conselho é se questionar primeiro: Você quer?. Em segundo lugar: Você pode? (tem estrutura, rede de apoio, condição econômica/emocional para seguir com seu desejo, seu sonho?). Sendo estas duas respostas positivas, meu terceiro conselho é se posicionar, estar pronta para atravessar todos os julgamentos que vão existir, obstáculos que vão tentar colocar e infelizmente ainda estar preparada para essa guerra silenciosa que se impõe, pois o sistema está sofisticadamente preparado para ir te fazendo aos poucos acreditar que alguns espaços não são para você. E quando você se posiciona, meu aprendizado é que toda a estrutura começa se acomodar e encontrar alternativas, soluções para receber esta “nova figura”, este “novo protocolo”. E com isso, todo mundo com desejos e sonhos semelhantes passam a se beneficiar, a perspectiva do que é do que não é aceitável se expande e todo mundo ganha, se melhora, evolui e se transforma positivamente.
Pode detalhar como é a rotina de um júri do festival durante o evento? Quantos dias vocês tiveram que ficar na França ?
A categoria que fui jurada é a Glass | Lion for Change que premia projetos do mundo inteiro que utilizaram o poder da criatividade em benefício de alguma transformação social efetiva priorizando equidade de gênero. E a rotina desse júri começa muito antes do evento presencial, que no meu caso contava com apresentações em Cannes dos projetos que foram selecionados para o shortlist. Até chegar neste momento, avaliamos em torno de 200 cases do mundo inteiro, fizemos encontros regulares virtuais com a mesa de júri e fechamos o shortlist também online para que nos 05 dias presenciais em Cannes as apresentações pudessem ser realizadas. No meu caso em especial, lembro de fazer as avaliações dos cases em meio a contrações e participar das reuniões de shortlist de dentro do hospital após parto da Olivia o que deixou tudo ainda mais intenso, porém também mais especial. Acredito muito no poder de transformação dessa indústria que corre volumes astronômicos de investimento e só aceitei viver essa jornada porque essa categoria contempla muitos dos elementos que acredito para avançarmos como ecossistema e principalmente como sociedade. E estar lá como mãe e profissional, com a minha filha recém nascida no colo, nesta categoria e com o festival apoiando minha decisão, é muito simbólico e é também parte da evolução que eu acredito.