Antes de qualquer coisa: se você não assistiu, assista antes de seguir a leitura deste texto, principalmente se você é atuante, participante ou líder de qualquer grupo de diversidade racial em sua empresa. Minha análise não é gerada a partir de um ponto de vista acadêmico e sim construída a partir de um ponto de vista de vivências, de quem está desde 1997 falando e vivendo o tema racial no mundo corporativo. Da vivência de quem ajudou a criar grupos de inclusão racial em empresas e fora delas, com um único objetivo: ascensão da população preta através da educação e oportunidades legítimas e igualitárias nas empresas.
Muitos dos nossos, que hoje ganham reconhecimentos públicos, decorrentes de atuação no combate antirracista no mundo dos CNPJs e querem (ou alegam o desejo de) tornar as empresas mais inclusivas para a população preta, estavam na zona do silêncio-conveniente, até o momento em que “George Floyd” ou “ESG” viram motivadores para posicionamento.
Por estas razões, o filme Ficção Americana, do diretor Cord Jefferson, adaptação do livro “Erasure”, de Percival Everett, é uma obra prima que desafia as expectativas e explora questões profundas sobre identidade racial e o movimento negro no mundo literário, mas cabe muito bem para qualquer segmento de mercado. Este filme se torna um marco que vai muito além de uma série de indicações ao Oscar: ele se torna obrigatório, ao lado do filme Uma Noite em Miami, da Regina King, para todas pessoas pretas que querem entender porque o movimento preto corporativo se perdeu.
O filme segue a história de Thelonious “Monk” Ellison, um escritor negro que luta para encontrar sucesso em um mundo literário dominado por pessoas não negras, demonstrando através do seu trabalho suas competências técnicas que são inquestionáveis, mas não são um sucesso devido à ausência do “pack rotulável de estereótipo para pessoas pretas”: histórias tristes com plot twist de superação. Monk, desiludido com as expectativas que lhe foram colocadas, decide escrever um livro satírico através de um pseudônimo, retratando estereótipos raciais e sociais de forma exagerada como uma forma de protesto e reflexão.
O livro vira um sucesso para o desespero do personagem. Neste momento do auge, dinheiro, fama, poder, convites vips e popularidade que começam a surgir para o pseudônimo do Monk, a dualidade da causa racial aparece em uma questão que o principal desafeto de Monk apresenta em uma única frase: É ruim atender ao gosto (imaginário) das pessoas (não negras)?
Este “desafeto”, representado pela personagem Sintara Golden, é a justamente a miopia que vemos nas subcelebridades pretas do mundo corporativo, que usam a causa racial baseadas no pensamento de que mal há em “ganhar” alguma coisa dando a “eles” o que “eles” querem de nós? As complexidades do racismo sistêmico e da luta por reconhecimento e validação dentro da comunidade preta e na sociedade em geral nos levaram a este patamar.
E o que é certo e errado neste sentido? Até que ponto ser o “Monk” pode ser ruim para o discurso antirracista nas empresas? Até que ponto ser a “Sintara” pode ser ruim para o discurso antirracista nas empresas? Não sei. E quem souber, tem a resposta de milhões em mãos. A parte triste é que todos nós em algum momento já fomos a um dos dois e, portanto, não podemos julgar aqui que ponto de vista é o certo ou o errado, mas podemos falar que, ao menos no Brasil, temos muito mais ‘Sintaras’ do que Monks e isso está no levando para um lugar perigoso de regressão e não evolução.
A regressão é decorrente da ausência de equilíbrio em questões pessoais x causas coletivas e, nos tornando um bando de Sintaras, permitimos que novamente as pessoas não negras nos coloquem nos rótulos atualizados que elas desejam nos ver. A adaptação do racismo em tempos de mundo VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo) é transparente e óbvia para quem já entendeu que o individual sobrepôs o coletivo a partir de 2020. É fato que conseguimos hackear o sistema. Também é fato que o antivírus do sistema é mais eficiente e inteligente do que a zona de conforto estruturada mais em fatos isolados do que fatos concretos criados a partir do imaginário de quem se coloca no lugar de porta-voz de Wakanda.
As Sintaras do mundo corporativo deram o ok para isso acontecer. Os novos rótulos que nos deram e nós aceitamos estão aí, no modus operandi claro de vários dos nossos que perderam o foco em discussões reais para nossa evolução racial nas empresas e não aceitamos mais ouvir verdades incômodas para retorno a causa coletiva e estamos confortáveis com mentiras sinceras que me interessam (individual) e que eles podem nos contar, seja esta mentira um prêmio, uma capa de revista ou uma participação internacional especial em algum evento “topzera” que teremos que produzir conteúdo e compartilhamos em futuros “downloads de conhecimento” com zero pessoas pretas tendo acesso a este conteúdo.
Ser “Monk” é entender que a causa nunca foi sobre likes, ostentação ou sobre julgar o verbo em primeira pessoa e sim sobre mostrar a potência da população preta e como a sociedade de modo geral só perde quando não conseguem aceitar este ponto. E por isso precisamos voltar a ter o equilíbrio, recalcular a rota e voltar a termos mais “Monks” urgentemente na liderança das nossas causas para alcançar o equilíbrio de quem sabe minimizarmos os impactos do antivírus que estão ativos e bugarmos o sistema de verdade, por coletivo e por o que nós queremos e não o que eles podem nos conceder.
O filme traz questões pessoais, familiares e de interseccionalidade muito válidas para reflexão dos Monks e das Sintaras e vale cada minuto. Mas especificamente para o mundo dos cnpjs, o filme traz um “acorda geral” e que também casa com a música do MV Bill Rapstência: Botar em prática a vocação, pra quem tá, entender como que foi construído. Transição com atualização pra deixar nosso verso um pouco mais evoluído. F* as visualizações, a meta continua adentrar nos corações. Rapstência, tem potência, somos cria, só família, com vivência.