Com que frequência, quando você critica alguma iniciativa ou atitude, a pessoa criticada te diz: “Você está falando isso porque você não entendeu nada do que eu disse/fiz”? Se você é uma mulher ou uma pessoa negra, imagino que essa situação não seja uma novidade. Se você for uma mulher negra, essa é quase uma constante.
Nesse novembro, mês da Consciência Negra aqui no Brasil, tivemos várias iniciativas: feiras, festas, encontros, shows, palestras… Tudo, aparentemente, visando exaltar a contribuição negra para a construção de nossa nação. Neste período tivemos iniciativas acertadas e equivocadas, como quase todo ano.
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Tivemos também pessoas negras, principalmente mulheres, tomando a frente em discutir e apontar as atividades que colocam negros em situações pouco confortáveis, para dizer o mínimo. Como quando professores decidem recriar navios negros em peças infantis escolares, ou representar negros através de cabelos com palha de aço.
Mães negras, cada vez mais atentas a essas questões, têm até mesmo reportado nas redes sociais a luta que travam pra que o corpo docente das escolas de seus filhos entenda que, mesmo feita de “boas intenções”, essas atividades que retratam de forma pejorativa nossos traços, ou que ligam os negros unicamente a escravidão, são sim racistas. E o que muitas ouvem? “Não é isso! Você não entendeu nada!”.
Não coincidentemente, esta foi, trocando em miúdos, a resposta dada por Alexandra Loras – ex-consulesa da França – quando, ao apresentar algumas imagens da mostra ‘Pourquoi pas?’, que será lançada em dezembro, foi alertada sobre a prática do blackface que essas trazem a tona. Loras tem postado em sua conta no Instagram imagens de homens e mulheres brancos e famosos, digitalmente transformados para parecerem negros.
O blackface é uma prática de mais de 100 anos que começou no teatro e circo, se estendeu para a TV e cinema. Sua principal característica é a de pintar pessoas brancas com tinta preta ou marrom para representar negros. Além disso, os traços negroides, como boca, nariz e até pé, peito e bunda são extremamente exagerados, fazendo com que pessoas negras sempre sejam retratadas de forma ridicularizada e desproporcional. O blackface também coloca o personagem negro como desastrado, desengonçado, preguiçoso, mau caráter, perigoso. Tudo ligado ao negro era ruim. Lidamos com a herança desta prática racista até hoje.
Sendo assim, ver pessoas brancas tendo seus traços naturais modificados, sua pele escurecida, fez muitas pessoas negras entenderem esta iniciativa como um “blackface moderno”. Algo que retoma uma prática que nos ridicularizou e tirou nosso protagonismo por muitos anos em diversos seguimentos artísticos, uma vez que, quando o blackface era uma prática em pleno vigor, pessoas negras eram impedidas de atuar.
Porém, não é assim que Alexandra e sua equipe enxergam. E, para explicar esta exposição, a mesma fez uma postagem em suas redes sociais. Entre outras coisas, o texto diz : “(…)a exposição apresenta 20 retratos de personalidades brancas que tiveram seus tons de pele escurecidos por meio de manipulação digital e ganharam traços afrodescendentes, entre elas Donald Trump, Rainha Elizabeth II, William Waack, Marilyn Monroe, Silvio Santos, João Doria, Dilma Rousseff, Michel Temer, Geraldo Alckmin, Xuxa e Gisele Bündchen. Nesse mundo “invertido”, Alexandra propõe, com uma dose de humor e ironia, uma reflexão mais profunda sobre o protagonismo do negro na história. ‘Será que faríamos os mesmos comentários preconceituosos? Teríamos as mesmas posturas? Tomaríamos as mesmas decisões? Trataríamos os diferentes da mesma forma?’”.
Confesso que quando vi essas imagens fiquei extremamente incomodada! Me senti ridicularizada. Então será que fui eu que não entendi o proposito “educativo” das fotos? Será que todos que identificaram o blackface desta futura exposição não são “evoluídos” ou “instruídos” o suficiente para entender o conceito?
Blackface não é educativo! O que ele faz é nos ridicularizar enquanto pessoas negras e tirar nosso protagonismo. É exatamente isso que essas imagens fazem! No texto que explica a exposição diz-se que a iniciativa propõe uma reflexão sobre o “protagonismo negro na história” e se, caso essas figuras fossem realmente negras, nossa sociedade teria a mesma postura. Então, será que se a Gisele Bündchen fosse negra o Brasil continuaria racista? .
Nossa sociedade é racista não é por falta de protagonismo preto! O racismo é que nos tira esse protagonismo! Entender o racismo no Brasil e lutar contra ele, é entender que muitos negros e negras com talento foram e são apagados da nossa história, é entender que tivemos guerreiros e guerreiras e que nosso país foi e é construído por mãos pretas. Isso significa dizer que não nos falta talentos, pra que eles sejam recriados ou forjados em pessoas brancas famosas, nos falta reconhecimento, oportunidade. Nos falta justiça!
E caso Gisele Bündchen , Xuxa, Willian Waack, Dilma, Ana Maria Braga, Jô Soares ou qualquer outro dessa lista, fossem pessoas negras, é provável que nem saberíamos de suas existências. Eles não teriam se tornado as estrelas que são e outras pessoas brancas estariam em seus lugares. É isso que chamamos de “privilégio branco”, algo amplamente discutido por quem de fato está comprometido pela luta contra o racismo no país. Será que Alexandra Loras estava ouvindo quando as militantes, produtoras de conhecimento, mulheres e homens negros brasileiros, estavam falando?
Eu entendi sim a exposição, por que tenho plena capacidade de entendimento. E não concordo com ela! Não concordo porque não precisamos inventar ícones negros em pessoas brancas, não precisamos criar uma história que não existe onde nosso protagonismo é retirado. Isso não é eficaz na luta antirracista, muito menos trás uma reflexão que contemple de verdade a população negra. Precisamos valorizar nossa história e nosso povo, atacar na estrutura racista nos dando vez e voz!
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