Viver em comunidade continua sendo uma das principais estratégias de mulheres negras para garantir sua sobrevivência e a prosperidade dos seus. É a partir de uma noção ancestral de coletividade que projetos grandiosos saem do papel, como pudemos acompanhar neste mês em que se comemora o Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, 25 de julho.
Uma dessas mulheres que tem feitos notáveis para sua comunidade é a Yalorixá Jaciara Ribeiro, do Axé Abassá de Ogum, localizado em Salvador. Ela é filha de Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, uma figura importante para as religiões de matriz africana no Brasil, Mãe Gilda é símbolo da luta contra a intolerância religiosa. O Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa é celebrado em 21 de janeiro, mesma data da morte de Mãe Gilda.
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Com essa herança, Jaciara Ribeiro também seguiu o caminho da luta pelo bem coletivo a partir do trabalho que realizada como líder religiosa. Mãe Jaciara compartilhou não só seus saberes, mas a terra do Quilombo Caipora com mais 16 mães de santo para que estas pudessem ter uma roça para cultuar o sagrado, além disso, ela também criou no local um alojamento que recebe mulheres em situação de vulnerabilidade e hoje luta para preservar a Lagoa do Abaeté.
Ao Mundo Negro, Mãe Jaciara Ribeiro falou sobre sua trajetória na luta contra o racismo, contra a intolerância religiosa, pela proteção das mulheres e contou sobre o trabalho que realiza, levando sua religiosidade aos presídios para que mulheres encarceradas também possam professar sua fé nos orixás: “O meu trabalho é intenso, não é só como mulher religiosa, mas como mulher ativista. Eu acredito que o terreiro de Candomblé precisa passar por transformações e a maior transformação é você mudar os paradigmas do que pensam de nós. As pessoas acham que terreiro de Candomblé é só festa é só tocar atabaque. Não é isso. O meu terreiro e a minha militância trazem transformação para essas mulheres”.
Leia a entrevista completa:
Mundo Negro – Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória e como se tornou uma Ialorixá. Quais foram os principais desafios enfrentados ao longo dessa jornada?
Mãe Jaciara – Eu tenho 55 anos e tô no Candomblé desde os 3 anos de idade. Na verdade, não foi eu que escolhi ser do Candomblé, foi Oxum que escolheu e eu sempre acompanhei minha mãe desde pequenininha e tenho o maior orgulho de ser do Candomblé. Então, na verdade, a gente não escolhe ser ialorixá, a gente é escolhida. Eu acho que eu nasci para ser uma sacerdotisa religiosa, algo que está no meu DNA e a maior dificuldade que eu encontrei foi o racismo. Quando eu ia para escola sendo uma mulher negra de candomblé, às vezes meu lanche era acaçá, abará, acarajé, e aí as outras crianças ou adolescente, na época, exorcizavam meu lanche, diziam que era coisa do diabo. Não era uma coisa muito suave, me chamavam de bruxa, às vezes e aí eu cresci, nunca fui empoderada no sentido de movimento negro, de saber o meu verdadeiro direito enquanto cidadã, de religião, e só agora há 23 anos da morte da minha mãe que eu consegui entender que eu já sofri o racismo, mas era um racismo estruturante, velado, uma brincadeirazinha ali, chamava de macaca, cabelo de bombril, essas coisas. Mas eu sempre tive uma autoestima muito grande porque minha mãe era uma mulher de Ogum e ela me deu essa possibilidade de me amar independente da minha cor de pele e da minha religiosidade, mas mesmo assim isso adoece. Hoje tenho 23 anos que eu me tornei ativista da luta contra intolerância religiosa, são 23 anos de dor porque mesmo depois da morte da minha mãe o busto dela foi violado duas vezes, os terreiros são invadidos, pessoas são insultadas nas ruas. Então, o maior desafio para mim é permanecer viva e ter a minha liberdade garantida de proferir a minha fé.
MN – O Quilombo Caipora é um projeto notável que abriga também o alojamento Makota Zimewang para mulheres em situação de vulnerabilidade. Como surgiu a inspiração para criar esse espaço e qual o impacto que ele tem tido na vida dessas mulheres? O Quilombo possui outras ações sociais?
Mãe Jaciara Ribeiro – Tem 10 anos que eu ganhei uma terra dentro do Quilombo Caipora e é um projeto notável porque é uma rua de terreiros. Eu tenho uma casa lá de Oxum, Ilê Axé Ofá Omi Layò, e devido a minha relação muito próxima com Macota Valdina, que era uma mulher negra de Candomblé, Nkisi Kavungo, do Axé Onimboyá, e era minha amiga íntima, ela me deu muitos ensinamentos, não só dentro da nossa ancestralidade, mas para vida. Ela me acolheu em todos os momentos, então o terreno lá de Oxum é muito grande, são 5 mil metros de terra. Aí eu digo ‘eu sozinha não vou conseguir gerar tantas benfeitorias para minha comunidade’. Aí eu tive a ideia, eu tenho o projeto Ìyá Àkobíode – Mulheres que Transformam, eu doei 16 pedaços de terra para 16 mulheres construírem junto comigo cada uma na sua casa, mas para gente dançar em um único terreiro. Então é o único terreiro coletivo do Brasil. Como Makota Valdina também ia ter um espaço lá, mas aí ela foi para o Orun, morreu. Aí eu tive a sensibilidade de inaugurar o primeiro alojamento feminino para colher 20 mulheres em situação de vulnerabilidade nesse espaço. Então o alojamento Zimewanga, que é a dijina dela, o nome de ancestralidade, foi inaugurado esse ano e a gente tá aí na luta, eu sou muito orgulhosa de poder ter conseguido edificar um projeto desse que é revolucionante não só para mim, mas para todas as mulheres da Bahia e, quiçá, do Brasil.
Hoje eu sou coordenadora do GT mulheres de Axé da Renafro e sou coordenadora também do Ìyá Àkobíode e sou uma mulher revolucionária de vidas. Hoje também estou assessorando o deputado federal Romeu Assunção e a companheira do MST, Lucinha. Então eu me sinto muito honrada de poder estar na frente de projetos que edificam a equidade de gênero, que trazem o empoderamento feminino, a liberdade de culto, o não racismo, que acabam com toda violência, seja ela homofóbica ou religiosa. Eu acho que o candomblé é uma religião que agrega o ser humano na sua plenitude do ser humano, independente de cor, independente da sua vontade ser o que quiser na terra.
O quilombo possui outras atividades também, nós temos feira para as mulheres e homens quilombolas, nós temos feira de saúde, nós temos uma casa de farinha e nós temos a vida, uma lagoa que a gente cuida aonde uma princesa de África veio até aqui e a gente fez um grande presente para Oxum e eu fiz parte desse momento, então eu acredito que as minhas ideias elas são ancestrais, é Oxum que me guia para esses projetos.
MN – Qual trabalho o coletivo Ìyá Àkobíode realiza?
Mãe Jaciara Ribeiro – O coletivo Ìyá Àkobíode – Mulheres que Transformam já começa fazendo algo transformador que é o primeiro festival de Oxum da Lagoa do Abaeté. A gente já está na terceira edição aonde o propósito maior é mostrar a beleza e o encantamento da Lagoa, mas também proteger o meio ambiente. O Ìyá Àkobíode representa uma semente transformadora que busca equidade de gênero e empoderamento feminino. Ao compartilhar minha terra e conhecimento, inspiro outras mulheres a terem voz e direitos garantidos.
Agora em agosto, dia 20, nós vamos ter um encontro de 20 psicólogos lá na terra de Oxum, elas estão vindo de São Paulo para dialogar comigo sobre a minha vivência nesse projeto, então o mundo já está sendo conhecedor dessa transformação e esse projeto eu tenho certeza que ele vai ser piloto. Ele já existe, mas ele está sendo exemplo para outras mulheres.
MB – A senhora tem um trabalho intenso como uma líder religiosa e comunitária. Como avalia o trabalho de mulheres negras que estão em comunidade se fortalecendo?
Mãe Jaciara Ribeiro – O meu trabalho é intenso, não é só como mulher religiosa, mas como mulher ativista. Eu acredito que o terreiro de Candomblé precisa passar por transformações e a maior transformação é você mudar os paradigmas do que pensam de nós. As pessoas acham que terreiro de Candomblé é só festa é só tocar atabaque. Não é isso. O meu terreiro e a minha militância trazem transformação para essas mulheres. Faço feira da saúde. Domingo que vem a gente vai ter cinema no Axé, eu convido mais de 30 mulheres, jovens para assistir um filme que traz a nossa realidade, mas que fortalece a nossas lutas. Eu tenho um trabalho com mulheres que estão passando por dificuldades financeiras, a gente dá curso de corte e costura, oficina de comida afro, turbante. Hoje eu tô com uma parceria com duas mulheres maravilhosas que é “Que Ladeira é essa”, lá na Ladeira da Preguiça [em Salvador, Bahia] e eu tô muito feliz com essa partilha da minha semente que não é só minha. Como a gente sabe, Marielle morre, mas deixa sementes, mas eu quero plantar essas sementes para se tornar árvores para nossas vidas e nos proteger.
Então eu me sinto mágica, ninguém sabe, mas eu acho que eu sou mágica porque eu consigo transformar não só minha vida, a dor em luta, o luto em luta e mudar para uma vida de acolhimento, de amor, de partilha, de respeito. A partilha maior é você dar a possibilidade ao outro de ter direito à Terra, direito à plantar. No quilombo a gente tem uma horta coletiva, nós temos um fogão a lenha e nós temos um terreiro para 16 mulheres trabalharem comigo. E eu tenho 55 anos, a gente vai envelhecendo e a gente não pode caminhar só. Uma amiga minha fala assim: “Eu sozinha vou pra perto, mas com a minha comunidade, a multidão, eu chego longe”.
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