Em 2019, o jornalista Gilberto Porcidonio, fez um tweet com a seguinte pergunta: “Se o racismo acabasse hoje, o que você faria?”. Um ano depois, em 2020, ele retornou a essa pergunta e expôs algumas impressões que teve desde então:
“Essa pergunta me revelou dois brasis: o que se sentiu “familiarizado” com as coisas que estavam sendo ditas já que nunca havia precisado pensar nisso antes. Cada brasil deste, com b minúsculo mesmo, tem uma cor diferente. Porém, à parte desses dois mundos, o que me chocou de verdade mesmo foi o completo analfabetismo social de muita gente que resolveu questionar o que estava sendo dito.
Falar de racismo é cansativo, mas o que a gente faria caso ele desaparecesse HOJE, AGORA? A gente moraria onde mora? Teria o mesmo emprego? As mesmas relações? Falaríamos do quê? E a dor pelo que se sofreu antes, passaria?
O Brasil não merece o negro e cada um que existe neste país eugenista por natureza é um milagre. Por isso, pensar no fim do racismo é algo maior que qualquer resposta. É pensar se o Brasil, de fato, existe para a maioria da população.
E o seu país, existe?”.
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Estou lhe dizendo agora que a pergunta de como se vive dentro de um corpo negro, dentro de um país perdido no Sonho, é a pergunta da minha vida, e a busca pela reposta a essa pergunta, é a final, a resposta em si.
– “Entre o Mundo e Eu” / Coates, 2015.
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Se o racismo acabasse hoje, muitas pessoas perderiam suas fontes de renda no mercado de comunicação, e isso não se restringe apenas aos indivíduos brancos. É fundamental não nos iludirmos.
O racismo tem sido capitalizado há bastante tempo no Brasil. Se ele, de fato, acabasse hoje, muitos influenciadores e profissionais da área da publicidade, oportunistas, que lucram explorando a violência cotidiana contra corpos negros, começariam a entregar currículos e buscar empregos formais.
Em setembro de 2016, adentrei o mundo do mercado publicitário com a experiência de um jovem ansioso para mudar o mundo. Fui recebido por Gustavo Otto, na época vice-presidente nacional de planejamento da NBS. Naquele momento, eu tinha apenas minha história de vida e uma série de verdades cruéis sobre um mundo desconhecido, o subúrbio carioca, pronto para confrontar meus colegas de equipe que, em grande parte, desconheciam a existência de uma realidade além da Central do Brasil.
Gosto de lembrar de 2016 como um marco da diversidade para as agências, um período que moldou as mudanças de discurso que ainda hoje vemos em luta para acontecer na prática em relação à diversidade dentro das empresas. Naquele período, todas as agências aspiravam ter em seu quadro de funcionários pessoas negras e LGBTQIAPN+, muitas vezes por pressão dos clientes, buscando uma imagem positiva para estampar na capa do Meio & Mensagem.
A demanda por diversidade e representatividade foi tão intensa naquele ano que permitiu que pessoas negras que já ocupavam posições-chave nas empresas se destacassem, assim como aqueles que recém-chegavam e compreendiam as complexidades do jogo que é o mercado publicitário. No entanto, nem todos conseguiam sobreviver, e aí entra o obstáculo deste game.
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É difícil jogar quando as regras servem para decretar o meu fim.
Arrastam minha cara no asfalto abusam,
Humilham, tiram a gente de louco.
Me matam todo dia mais um pouco.
– “Afrontamento” / Tássia Reis, 2015
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O grande problema é que essas pessoas, assim com eu, ingressavam nas agências na base da pirâmide como estagiários e não eram devidamente preparadas para dar os próximos passos dentro desses espaços. Acabavam restritos ao setor VDM (vai dar merda) e destinados a participar de comitês de diversidade que, infelizmente, não eram e ainda não são efetivos. Esses pregam a diversidade com uma abordagem negativa baseada em cotas, aproveitando de nossas imagens para proclamar ao mercado: “Já temos diversidade, cumprimos nosso papel!” É como se estivessem usando a nossa representatividade para atender a um requisito superficial, sem abordar as profundas disparidades econômicas, sociais e educacionais entre diferentes grupos étnico-raciais.
É de extrema importância que a discussão sobre o racismo esteja nas mãos de pessoas negras, mas é preciso tomar cuidado para que nem todos os assuntos permeiem apenas a negritude nos esvaziando quanto indivíduos plurais e nos reduzindo a este tema. Poder ter escolha falar sobre afeto, outras perspectivas e poder ter outros problemas é, também, um ato político.
Sempre reflito sobre o que aconteceria se o racismo fosse completamente erradicado hoje, e, lamentavelmente, chego sempre à mesma resposta: as pessoas negras no mercado publicitário e os influenciadores digitais seriam mais uma vez relegados à invisibilidade. É angustiante considerar esse argumento. No entanto, em um mundo onde essas pessoas não recebem e também não buscam o devido preparo e orientação para se destacarem e alcançarem o sucesso, muitas vezes elas se contentam em ocupar apenas um espaço designado para uma única pessoa negra, satisfazendo-se com a sensação de “ter chegado lá” simplesmente por estarem trabalhando em um setor que ainda é predominantemente liderado por pessoas brancas, com total interesse em perpetuar essa realidade enquanto for lucrativo nos manter em combate por espaço.
Quando colocamos uma lupa nas empresas e encontramos pessoas negras ocupando posições de destaque, nos deparemos com o fenômeno da “síndrome do negro único”, que se resume em ter apenas uma pessoa negra desempenhando o papel de representatividade nesses espaços, buscando provar aos brancos sua importância e indispensabilidade, em vez de reconhecer que são os brancos que dominam numericamente esses espaços e desejam apenas uma representação mínima da negritude. É fundamental compreender que essa dinâmica é equivocada, uma vez que a representatividade genuína não deve se restringir a apenas um indivíduo de um grupo racial, mas sim assegurar a presença e a voz de diversas pessoas negras em todas as esferas da sociedade.
Outra questão com a qual nos deparamos ao examinar as empresas é a síndrome do “só por sermos negros”, na qual os negros se agrupam com base apenas por serem negros, mas acabam se esquecendo do principal motivo pelo qual estão ali: entregar e ter um bom desempenho profissional.
Qual é o seu motivo para estar aí?
Dentro deste universo perigoso, há um grupo de profissionais negros que conquistaram posições de destaque e estão prosperando financeiramente por meio de carreiras que se baseiam na temática racial. Constantemente, esses indivíduos se aproveitam da causa, colocando-a como o foco principal, mas, na realidade, não estão comprometidos em dedicar-se plenamente ao seu trabalho. É a prática do que chamamos de tokenismo, fazer um esforço superficial ou simbólico para membros de minorias.
Além disso, eles demonstram incômodo quando um colega negro não compartilha de suas opiniões. Respeitar as individualidades e a pluralidade também é importante. Não podemos banalizar a militância. Existem aspectos de personalidade que podem gerar tanto aliados quanto inimigos. Nem todas as pessoas negras estarão alinhadas em todas as situações, e essa mentalidade precisa ser constantemente discutida.
No contexto do mercado publicitário, é de extrema importância adotar uma postura profissional exemplar, que transcenda o envolvimento exclusivo com questões relacionadas à negritude, e que esteja focada no trabalho e na obtenção de resultados. É crucial compreender que a luta não se resume mais apenas a conquistar um lugar, mas também a manter e ocupar posições que tenham poder de influenciar as decisões.
Respondendo à pergunta levantada lá no início por Gilberto Porcidonio: Eu seguiria sendo um bom publicitário especialista em estratégia de comunicação. Assim como o motorista do ônibus continuará sendo um bom motorista, a caixa do supermercado continuará sendo uma boa caixa e o médico sendo um excelente profissional. E você, se o racismo acabasse hoje, o que faria?